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As lembranças de Dicão, ex-marcador de Pelé



As lembranças de Dicão, ex-marcador de Pelé
Oswaldo Iembo, o “Dicão”, é um poço de memórias sobre o futebol. Nem poderia ser diferente, já que ele fez desse esporte a sua profissão, primeiro como jogador, depois como técnico. Aos 75 anos (nasceu em 27 de agosto de 1931), ainda magro e elegante nos seus 1,86m, o ex-zagueiro do América, Botafogo, Palmeiras e Porto de Portugal, entre outras equipes, tem um motivo especial para estar feliz: na quarta-feira, o Rio Preto conseguiu o acesso para a divisão principal do futebol paulista. Detalhe: o “Jacaré” foi o primeiro clube da carreira de Dicão como técnico, em 1963 – e ele estreou com o título da Segunda Divisão de São Paulo. Hoje, o ex-jogador vive no sossego com a esposa Nanci em Fernandópolis, onde fixou residência em 1992. Nesta entrevista, ele relembra fatos e pessoas, o Fefecê de 1979, no qual ficou 33 partidas sem perder e uma experiência incomparável: a responsabilidade de marcar, nos jogos contra o Santos, o “Negão”, como ele diz – um certo jogador que se posicionava no ataque, entre Coutinho e Pepe...

CIDADÃO: Onde você começou a jogar?
DICÃO: Eu morava em Rio Preto e comecei num time da Vila Ercília, o Fluminense, disputando o campeonato da cidade. Jogava no ataque, eu e o finado Urias – isso em 49. Em 1950, fui para o time amador do Rio Preto. Em 51, fui jogar no GEMA, de Monte Aprazível, que na época possuía um grande time. Aí eu já estava jogando como zagueiro, porque tinha boa impulsão adquirida nos tempos do basquete. Joguei basquete até com o falecido deputado Roberto Rollemberg.

CIDADÃO: No GEMA, você ainda era amador?
DICÃO: Sim. Em 52, o América reativou seu time profissional, que havia parado em 48. Os dirigentes não queriam jogadores da cidade – estavam trazendo atletas de Campinas, do Rio de janeiro, de Minas Gerais. O Benedito Teixeira era o diretor de futebol do América, e trouxe o Moacir Morais de Piracicaba para ser o técnico. Eu e o Urias tentamos treinar no América, mas não deixaram. Queriam jogadores de nome. Aí, eu e o Urias viemos jogar no VEC - Votuporanguense Esporte Clube. Enquanto isso, o América tinha acabado de montar o time. E onde foi o primeiro amistoso? Em Votuporanga. Eu e o Urias arrebentamos no jogo – o Urias arrasando a defesa do América, eu segurando tudo lá atrás. O (técnico) Moacir Morais escutou os comentários no banco de que nós éramos de Rio Preto e deu a bronca no Birigui, que era o apelido do Benedito Teixeira: “Esses caras são de Rio Preto e vocês deixam eles sair?!” Moral da história: naquele dia mesmo, tivemos que fazer as malas e voltar para Rio Preto com a delegação. No domingo seguinte, estreamos como profissionais no campeonato da Segundona, contra a Ponte Preta, eu de quarto-zagueiro e o Urias de ponta-esquerda. Era maio de 52. Perdemos de 3 x 1, mas nós dois fomos bem. O presidente do América era o Euphly Jalles.

CIDADÃO: E depois disso?
DICÃO: Fiquei no América até 54, quando fui vendido para o XV de Piracicaba. Na época, o XV estava na 1ª Divisão. Porém, durante os seis meses que fiquei lá, não me acostumei com a cidade. Além disso, eu já namorava a minha esposa, e não agüentei. Pedi para a diretoria do América para voltar. O presidente do XV era o Romeu Ítalo Rípoli. Só que, em 56, o Botafogo de Ribeirão Preto estava montando um timaço, o técnico era o José Agnelli. Decidiram me contratar, e a essa altura eu já queria um contrato melhor, porque pretendia fazer um pé-de-meia para casar. O América não tinha condições de me pagar melhor e fui para Ribeirão. No campeonato da Segunda Divisão de 1956, fomos campeões e obtivemos o acesso. Fomos campeões de uma série e o Paulista de Jundiaí da outra. Partimos para uma melhor de três para definir o campeão. No primeiro jogo, em Ribeirão, ganhamos de 1 x 0. Em Jundiaí, perdemos de 3 x 1. A terceira e decisiva partida foi no Parque Antarctica, em São Paulo. O jogo foi no dia 10 de janeiro de 57. Logo no início, levei uma cotovelada no olho, tive que jogar com uma pedra de gelo na mão para diminuir o inchaço. Aos 30 minutos, aconteceu uma falta a nosso favor. O goleiro do Paulista era o Nicanor, um goleiraço. A falta era na direita do ataque, eles fizeram a barreira e o Noca, nosso ponta, bateu de curva. A bola bateu na trave e voltou para o meio da área. Eu vinha de frente e cabeceei para a rede. Fiz o gol da decisão, que levou o Botafogo à 1ª Divisão. Recentemente, o Botafogo publicou uma revista especial, para comemorar os 50 anos dessa conquista.

CIDADÃO: Você continuou no Botafogo?
DICÃO: Sim. Em 57, ficamos em 4º lugar no Paulistão. Em 58, 5º lugar. Naquele tempo, a Mondaine, fabricante de relógios, fazia a seleção da rodada e dava um relógio para cada jogador. Eu ganhava sempre. Como não uso relógio, dava para os parentes e amigos. E isso, disputando com jogadores do Palmeiras, do São Paulo, do Corinthians.

CIDADÃO: Isso não despertou o interesse dos times grandes?
DICÃO: Sem dúvida. Cheguei a acertar as bases de um contrato com o São Paulo – o diretor era o banqueiro Manoel Raimundo Paes de Almeida. Só que o Botafogo pediu muito. Além disso, eu era palmeirense desde moleque. No final de 58 o Oswaldo Brandão assumiu o Palmeiras com a proposta de montar um grande time para 59. E fez isso mesmo: trouxe o Julinho Botelho da Fiorentina, o Américo Murolo, que estava no Ascoli, o Aníbal, o Altemar, o Geo. Do Rio Grande do Sul vieram o Valdir Joaquim de Moraes, o Chinesinho e o Enio Andrade. O Djalma Santos já estava lá, além do Waldemar Carabina e do Geraldo Scotto. Aí o Brandão falou para o Nelson Duque, diretor de futebol: “contrata o Dicão porque no meio desse monte de jogador clássico, eu preciso de um beque que ‘chegue junto’”. Já em 59, ganhamos o Supercampeonato, numa melhor de três contra o Santos.

CIDADÃO: Qual era a escalação desse time?
DICÃO: Valdir, Djalma Santos, eu, Carabina (Aldemar) e Geraldo Scotto; Zequinha e Chinesinho (Enio Andrade); Julinho (Paulinho), Américo Murolo, Romeiro e Geo. No primeiro jogo, 1 x 1, o gol deles foi do Negão. No segundo, 2x2, o Negão fez os dois gols. Nas duas vezes, ele marcou e o Palmeiras buscou o empate. Na terceira partida, o Pelé logo fez 1 x 0. O Julinho Botelho conseguiu empatar. No segundo tempo, o Palmeiras atacava o gol da concha acústica do Pacaembu. Faltando 5 minutos, o Romeiro fez o gol da vitória cobrando falta.

CIDADÃO: Como era marcar o Pelé? Dava para dormir na véspera?
DICÃO: Era uma fera. Pelé era do outro mundo. E havia muitos jogadores difíceis de marcar, como o Garrincha, o Canhoteiro, o Zizinho. Naquele tempo, era homem a homem, sem esse sentido de cobertura que se vê hoje. Mas tem um detalhe interessante: na época em que joguei no Botafogo, o Pelé não conseguia levar vantagem dentro de Ribeirão. Naquele tempo, o único “grande” que levava vantagem lá era o Corinthians.

CIDADÃO: E a experiência internacional no Futebol Clube do Porto?
DICÃO: Fiquei três anos em Portugal, mas deixar a família dividida é complicado. Um dos nossos filhos ficou no Brasil, aí chegavam cartas, fotografias, a Nanci chorava...Meu treinador era o brasileiro Oto Vieira. Fui para lá em agosto de 1960, e voltei em 1963. Machuquei o joelho, decidi voltar.

CIDADÃO: Voltou para Rio Preto?
DICÃO: Sim, e parei de jogar. Já possuía uma boa situação financeira, havia comprado um sítio de café. Minha mulher era professora, tinha cadeira. Virei técnico do Rio Preto. No primeiro ano, subimos para a Segunda Divisão. Era um grande time – Paulinho, Michel, Jacinto, Icão e Antonio João; Zé Carlos, Milton e Bulau; Colada, Joãozinho e Noriva.

CIDADÃO: Em 1979, você foi técnico daquele grande time do Fernandópolis. Por que você saiu, faltando poucas rodadas para o fim do campeonato, e com o time em primeiro lugar?
DICÃO: Combinei com o presidente Fernando Sisto, no final de 78, que assumiria o time em janeiro de 79. No dia que cheguei, trouxe o goleiro Durval comigo. Aí montei aquele time que você conheceu. O Carlos Silva, muita gente se diz o autor da “descoberta”, mas na verdade quem o trouxe de Rio Brilhante (MS) foi um viajante, não me lembro seu nome. Quando faltavam quatro ou cinco partidas para o fim do campeonato, perdemos um jogo besta em Salto. Tinha chovido, o campo cheio de buracos, tomamos gols de cabeça de um baixinho nº 8. O campo não tinha boas condições de jogo para um atleta técnico como o Carlos Silva e eu o substituí. Na terça-feira, o Fernando Sisto, o Manezinho Bilheteiro e outros chegaram ao estádio quando eu começava o treino. Eles me chamaram de lado e disseram que “gostariam de participar da escalação do time”. Ora, eu nunca aceitei isso. Fui embora para o Hotel Municipal, onde morava. Apesar de várias pessoas tentarem me convencer a ficar, como o Du, o Cláudio Rodante, o Aer Trindade, na sexta-feira fui embora. Depois, o time foi campeão. O time que eu montei, e que ficou invicto por 33 partidas.

CIDADÃO: Qual é a sua sensação ao ver o Rio Preto, time onde você começou como técnico, subir pela primeira vez, em 88 anos de existência, à divisão principal?
DICÃO: Olha, eu sucedi como técnico o Sebastião Miranda, pai do Mirandinha, em 63, e tive a felicidade de ser campeão pelo “Jacaré”. Sinto-me gratificado por esse título que o time ganhou quarta-feira. Eu gosto muito do Rio Preto, fui jogador amador lá. Todo mundo está de parabéns. O Rio Preto tem torcedores antigos, que estão há 60 anos na beira do alambrado e choram pelo clube. Gostaria de dizer o seguinte: talvez a queda do América tenha um lado positivo. Pode levar os dirigentes a rever os conceitos. Só que, realmente, é muito difícil dirigir futebol no Brasil – pelo menos enquanto vigorar a “Lei Pelé”, que acaba com a estrutura dos clubes.