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Célia vai à luta pelos deficientes visuais



Célia vai à luta pelos deficientes visuais
A presidente da Associação dos Deficientes Visuais de Fernandópolis, Célia Aparecida Fontes Lopes Mafra, que também é membro do Conselho Tutelar, comprou briga séria com a Câmara Municipal. No dia 12, os vereadores aprovaram a toque de caixa um projeto de Lei sobre o uso das calçadas da cidade. Segundo Célia, isso favorece os comerciantes que as utilizam e prejudica os deficientes físicos e visuais, que estariam sendo lesados no seu direito de ir e vir. Com respaldo do promotor de Justiça Denis Henrique Silva – ele garantiu que, se a prefeita Ana Bim não vetar o projeto, irá à Procuradoria Geral -, Célia não tem medo de cara feia. Estribada no amor ao filho Gustavo e aos outros integrantes da associação, ela arregaça as mangas e vai à luta.

CIDADÃO: Como você se envolveu com o trabalho que hoje faz no Conselho Tutelar?
CÉLIA: Fui eleita há quatro anos pelas entidades para ser membro do conselho tutelar. Eram cinco e eu fui uma das cinco, fiquei em terceiro lugar. Agora, na última eleição eu fui reeleita para ocupar mais três anos no cargo, é o meu último mandato porque o estatuto da criança diz que o conselheiro pode ficar em dois mandatos só. Então é meu último mandato, infelizmente, é um trabalho que eu gosto muito de fazer - é um trabalho no qual me envolvi totalmente.

CIDADÃO: Além da atividade do Conselho Tutelar, você é presidente da Associação dos Deficientes Visuais de Fernandópolis. Quando foi fundada a associação e quais são os seus objetivos?
CÉLIA: Sou fernandopolense, nasci aqui, fui embora com seis anos para São Paulo com meus pais. Estudei, casei e após 12 anos voltei pra Fernandópolis com meu marido e três filhos. Meu filho Gustavo, de 18 anos, é deficiente visual, e lá em São Paulo nós tínhamos tudo para que ele fosse inserido na sociedade, escolas boas para deficientes visuais, professores bons. Só que tivemos vários problemas com assalto, segurança, inclusive num dos assaltos que meu marido sofreu, ele estava dentro do carro com meu filho e levaram nosso carro. A gente resolveu vir para o interior, já que meus pais continuavam morando aqui. Quando eu cheguei encontrei uma grande dificuldade de inserir meu filho Gustavo tanto na escola como na sociedade. Em primeiro lugar havia sido montado uma sala aqui na época pelo prefeito Farinazzo. Ele montou uma sala de braile e trouxe uma professora para ensinar o braile, mas não era isso que eu queria pro meu filho - que ele entrasse na escola e aprendesse o braile só, ele tinha que ser inserido na sociedade. Escrever no método dele é claro, mas eu queria que ele aprendesse muito mais além do que ele tinha condições. A partir daí eu fui conhecendo pessoas com deficiência visual, adolescentes, crianças e pais. Foi quando eu e meu marido decidimos fundar a associação de deficientes visuais de Fernandópolis. No início nós começamos com oito deficientes, juntamos alguns amigos, criamos um estatuto, uma diretoria que funcionou na minha casa durante oito meses. Depois na época do prefeito Newton Camargo, ele alugou uma sede com quatro cômodos pra gente onde a gente começou a trabalhar. Fizemos projetos, montamos uma sala de artesanato, marcenaria, informática, contratamos uma professora de braile que ensina além do braile, orientação e mobilidade. O Gustavo começou a participar da associação de Judô de Fernandópolis onde ele faz parte da federação para-olímpica de judô. Hoje ele faz o ensino médio, está inserido na escola do estado, ele faz judô, toca violão, viola. A natação não continuou porque não gostou.

CIDADÃO: A Associação chegou a ter quantos deficientes visuais?
CÉLIA: Já chegamos a ter 53 deficientes visuais da região. Hoje temos 45 matriculados na Associação porque tivemos aí alguns falecimentos por causa da idade e outros que se mudaram da cidade e deixaram de participar, mas nós temos aí uma estimativa de que haja mais de 80 na cidade e região.

CIDADÃO: O Gustavo foi entrevistado pelo CIDADÃO tempos atrás sobre a sua superação. Recentemente você me contou que ele está passando por um período depressivo em função de um episódio que aconteceu com ele tempos atrás. O que ocorreu?
CÉLIA: Não foi apenas um, e sim três episódios. Isso tudo foi somando para que ele chegasse no ponto em que está. A primeira vez aconteceu dentro de um supermercado da cidade. Meu filho foi com meu marido fazer compras e ele estava segurando o carrinho, deu um passo mais à frente e derrubou a pilha de papel higiênico, veio um “guardinha”, arrancou o carrinho da mão do meu filho, não sei se ele não notou que o Gustavo não enxergava e o Gustavo caiu em cima da pilha, meu marido chamou o gerente, e ele disse que não era obrigado a saber que o Gustavo era cego, que ele deveria usar uma camiseta escrito: “Sou cego”. Então essa foi uma das vezes que meu filho passou por um constrangimento muito grande. Na segunda vez meu filho estava na rua com minha filha de 10 anos e em frente a uma bicicletaria, onde as bicicletas são comercializadas na calçada. Então ele caiu. Estava com a bengala, mas caiu em cima, e o rapaz falou que não ia mudar nada só porque ele era o único cego que passava ali. Pra que ele ia mudar? Só que ali passam idosos, crianças, cadeirantes, e a calçada é pública, é do pedestre que paga imposto e tem direito de ir e vir. Nós mesmos temos dificuldades para passar nas calçadas ocupadas. O terceiro episódio foi em frente a uma sorveteria, onde as mesas ficam na calçada, meu filho caminhava e em uma dessas, ele tropeçou e caiu por cima da mesa, onde uma pessoa tomava sorvete. Meu filho chora, pede desculpa, mas não é ele quem tem que pedir desculpa. A partir disso ele não quer mais sair de casa mais.

CIDADÃO: O que você achou da reunião com o promotor no dia 19?
CÉLIA: Essa reunião aconteceu porque um deficiente foi atropelado em frente a um supermercado, ele tem onze anos, estava caminhando de bengala, como os carros ali ficam estacionados na calçada, ele saiu da calçada para caminhar atrás dos carros e foi atropelado por um carro. Até hoje ele está de cama, quebrou o fêmur, a clavícula, teve escoriações na cabeça. Outro deficiente raspou a cabeça num toldo da São Paulo. Outro caiu dentro de uma caçamba que estava na calçada. Esse tipo de desrespeito vai se acumulando. Eu não entrei com esse pedido no MP só por causa do meu filho. O doutor Denis (promotor de Justiça) me mandou fazer um ofício relatando tudo. Ele disse: “Se você quiser colocar o nome dos comerciantes, o nome dos estabelecimentos que estão causando problema, pode relatar no ofício”. Relatei nove dos que nós tivemos mais problemas, só que existem muito mais, 30, 40 comerciantes. Ele pediu à prefeitura que fiscalizasse, pediu regularização, não foi feito nada, o que a prefeitura fez foi a prorrogação do prazo que na época o doutor Denis deu de 30 dias. Ele convocou a reunião na Câmara. Quando chegamos lá, no dia 19, soubemos que na terça feira anterior havia sido aprovado por 7 vereadores o projeto dizendo que o comerciante poderia utilizar a calçada deixando apenas 0,90 cm de espaço para as pessoas se locomoverem. Isso não pé suficiente. Você coloca em 0,90 cm uma cadeira de roda? Não! É preciso no mínimo um metro pra caminhar com aquele andador. O cadeirante necessita de 1,10 m. Um deficiente visual que bate a bengala 0,50 cm à direita e 0,50 cm à esquerda, precisa de no mínimo um metro. Dá pra ele localizar os obstáculos que tem diante dele. Quer dizer, a coisa já estava feita e aprovada e tinha ido para a prefeita para que ela sancionasse a lei. O doutor Denis deixou lá bem claro que se a prefeita não vetasse essa lei, ele entraria com uma ação civil publica junto ao procurador geral da Justiça. Nesse dia eu fiquei muito irritada na Câmara, desafiei os comerciantes, desafiei os vereadores, que eu acredito que nenhum deles tem nenhum filho deficiente, doente. Desafiei que vendassem os olhos, pegassem uma bengala e tentassem se guiar pela rua Brasil em horário de pico ou então pela Libero de Almeida Silvares.

CIDADÃO: O que você acha que levou os vereadores a aprovar esse projeto?
CÉLIA: É um ano de eleição, temos na associação 45 deficientes sendo que 30 votam. Ora, são 10 mil comerciantes. Você acha que eles iriam a favor dos deficientes ou dos comerciantes? Fiquei admirada porque entre os sete que votaram a favor, teve vereador que já esteve dentro da associação oferecendo ajuda. Claro que em ano de eleição, depois nunca mais apareceu. Acredito que eles querem beneficiar os comerciantes e esquecer que existem deficientes. Eu vou brigar e ninguém vai fechar minha boca. Se o código de postura do município diz que são dois metros, eu vou brigar por dois metros. Só vou ficar quieta quando vir que meu filho e os outros deficientes têm condições de atravessar a rua normalmente. Exercer a cidadania é meu papel. Existem deficientes sim e eles querem respeito e eu exijo que sejam respeitados. Estou à frente deles para isso.