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Dunga treinador



Dunga treinador
Paulo Custódio de Oliveira *

Ganhar de três a zero da Argentina é realmente muito bom. Ainda que não goste muito de concordar com o Galvão Bueno. Não porque ele é chato, mas porque reconheço que debaixo do prazer dos brasileiros está um rancor indefensável contra a empáfia argentina. Não quero ser indelicado com os vizinhos, mas o ato de retirar as medalhas logo depois de recebê-las deveria ser punido como falta de decoro esportivo.

Mas o que eu mais gostei foi do discurso do treinador. Vi poucas coisas tão adequadas do ponto de vista filosófico no mundo do futebol. O fato de Dunga dizer que quer “uma seleção com a cara dos trabalhadores brasileiros” veio em muito boa hora. A propriedade desse tipo de conversa está bastante afinada com os eventos que originaram o grupo que jogou no último domingo. A maioria dos jogadores só tiveram a sua oportunidade porque os legítimos proprietários dos cargos “não puderam aceitar o convite para a seleção”. Que bom.

A expressão “cara dos trabalhadores” dita pelo treinador pode ser classificada de proletária. Adjetivo que – aliás – combina muito bem com o tipo de futebol desenvolvido por ele ao longo de sua carreira como jogador. É bom lembrar que Dunga era criticado por ter apenas “raça”. Seu jogo só tinha “garra”, não tinha a “ginga” que caracteriza o brasileiro. Foi catártico ouvi-lo dizer que a vitória de domingo era dedicada às crianças que sofrem no Brasil, na Índia e na África. Pareceu-me que o Futebol, símbolo mais eloqüente de nossa cultura, tinha tomado consciência de sua dimensão política.

O discurso de Dunga é proletário, por isso diferente do de Felipão, de tendência liberal. O atual treinador do time português pensa o seu trabalho (e, por extensão, o mundo) a partir da eficiência, dos resultados finais. Esse tipo de atitude até foi chamada por ele de “futebol de resultados”. Ainda que tenha suas qualidades, a atitude é tipicamente burguesa e, portanto, individualista, centrada no sucesso. O “resultado” é indiferente ao que lhe circunda. Talvez por isso Felipão faça tanta questão de se apresentar em campo vestindo um abrigo esportivo, cujos significados simbólicos remetem ao fato de que ele está preocupado apenas em desempenhar o papel que lhe compete. Bom papel, bom resultado, hasta la vista, baby.

O discurso do Dunga é proletário, por isso diferente do de Wanderlei Luxemburgo, de raízes aristocráticas. Sob a direção de Luxemburgo temeu-se que o firmamento da seleção ficasse sem algumas estrelas. Haveria uma mistura de brilhos. Previu-se uma competição de vaidades e o conseqüente ofuscamento de alguns. Nada de muito grave aconteceu, até porque o terno e a gravata, que mal se continham na orla do gramado, não se dispôs a discutir suas decisões.

Talvez não seja possível resolver os problemas denunciados pelo atual treinador da seleção brasileira apenas com as vitórias sobre nossos adversários tradicionais. Nossas chagas são muito antigas e muito grandes. Só o discurso proletário não pode dar conta delas. Mas gostei de vê-lo com uma camisa simples, sem a indiferença liberal do abrigo esportivo e igualmente distante do requinte elitista do terno bem cortado. Eu vi um homem cuidando do seu trabalho e consciente do lugar que ocupa no imaginário brasileiro. Gostei do que vi. Aprovei o trabalho. Adorei o resultado.

* Paulo Custódio de Oliveira
Professor de Filosofia da FEF e de Literatura da Coopere.