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Estado aponta a negligência de médicos em morte de bebês



Estado aponta a negligência de médicos em morte de bebês
Segundo matéria de capa publicada neste domingo, dia 24, pelo jornal DIÁRIO DA REGIÃO, assinada pelos jornalistas Andrea Inocente, Rita Magalhães e Allan de Abreu, as duas filhas gêmeas da empregada doméstica Rita de Cássia dos Santos não morreram por falha, burocracia ou lentidão da Central de Vagas da Direção Regional de Saúde (DRS-15) como os médicos da Santa Casa de Fernandópolis afirmaram à época. Embora o relatório das intervenção do Estado não afirme com todas as letras, apresenta fortes indícios de que os médicos da Santa Casa foram negligentes ou prevaricaram no atendimento à gestante, o que resultou na morte de suas filhas Lorraine Vitória e Layane Mara da Silva. Cópias da conclusão da apuração da Comissão Processante do Estado foram encaminhadas à Polícia Civil, Ministério Público e Conselho Regional de Medicina para que medidas criminais e administrativas sejam tomadas. O relatório é contundente ao afirmar que o atendimento dado à gestante pelo médico José Roberto Penna, às 18h30 do dia 10 de dezembro, se restringiu a “inibir o trabalho de parto e medicar a paciente visando a maturação dos fetos”. Ao constatar a prematuridade do parto das gêmeas, Penna solicitou à Central a transferência da mulher para um hospital com UTI neonatal que comportasse os dois bebês. Naquela mesma noite, a Central consultou três hospitais que negaram o pedido por falta de leitos.

Até que às 19h do dia 11, queixando-se de fortes dores abdominais, Rita de Cássia foi atendida pelo médico Osny Renato Martins Luz, que após exame clínico a encaminhou ao Centro Obstétrico ao constatar que ela iniciava o trabalho de parto. Às 20h45 desse mesmo dia, embora exames tivessem detectado batimento cardíaco de apenas um dos bebês, a mãe não recebeu a notícia da morte de uma das filhas. Somente às 11h do dia seguinte (12), quando deu à luz de parto normal, Rita de Cássia foi informada que uma das filhas nascera morta. A outra foi então transferida à UTIneonatal da Santa Casa de Jales, mas morreu dois dias depois por infecção generalisada. Enquanto Rita de Cássia sofria sozinha na maca do hospital, profissionais da Central de Vagas fizeram 14 ligações à Santa Casa de Fernandópolis para atualizar o quadro da paciente e confirmar a necessidade da transferência para outro hospital, mas não conseguiram localizar nenhum dos médicos do caso.

Extratos telefônicos que comprovam a informação da Central e desmentem a versão do obstetra Flumignan dada à época estão anexados ao processo, obtidos com exclusividade pelo Diário da Região. A conclusão das investigações dá a entender que o destino dos bebês de Rita de Cássia poderia ter sido outro se os médicos que a atenderam tivessem ao menos atendido a ligação da Central. “Se (os médicos tivessem) relatado a gravidade do caso, a paciente teria ido diretamente com vaga zero para o Hospital de Base. Por uma fatalidade não houve atualização do quadro. Quando houve já tinha acontecido o que todo mundo conhece”, disse o diretor da DRS-15, Valdecir Tadei.


‘Conclusões do Estado são graves’, diz promotor
O Estado apurou uma série de falhas no atendimento da gestante Rita de Cássia dos Santos na Santa Casa de Fernandópolis, além de contradições nos depoimentos dos médicos do hospital. O resultado das investigações derruba a tese dos médicos de que a demora na Central de Vagas da Direção Regional de Saúde (DRS-15) foi a causa da morte dos dois bebês gêmeos. A intervenção foi solicitada pelo secretário estadual de Saúde, Luiz Barradas Barata, depois de reportagem do Diário da Região em 18 de dezembro de 2007 denunciar a morte dos bebês. O relatório da auditoria na Central, obtido com exclusividade pelo Diário, refaz a cronologia do atendimento a Rita de Cássia, feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Para o promotor Denis Henrique Silva, as conclusões da intervenção “indicam falhas graves da Santa Casa” e merecem investigação criminal contra os responsáveis pelo atendimento. O Conselho Regional de Medicina (CRM) também informou que vai instaurar sindicância para apurar a conduta administrativa dos médicos. Leia a seguir as conclusões da intervenção:

Negligência no atendimento
Aos sete meses de gravidez, a gestante Rita de Cássia deu entrada na Santa Casa às 16h30 do dia 10 de dezembro do ano passado, uma segunda-feira, com as primeiras contrações do parto prematuro. Foi atendida pelo plantonista José Roberto Penna. O médico fez apenas um exame clínico na paciente e baseou-se em um ultra-som feito no dia anterior no posto de saúde onde Rita vinha fazendo o pré-natal. Penna disse à mãe que procuraria retardar o parto com medicação para um maior desenvolvimento dos pulmões dos dois fetos. O procedimento contraria as recomendações técnicas para o caso. Segundo a obstetra da USP Maria de Lourdes Brizot, em casos de gravidez de risco o quadro clínico dos bebês altera com muita freqüência, o que demanda ultra-sons diários. Enquanto Rita era encaminhada para o quarto do hospital, Penna telefonou para a Central de Vagas em Rio Preto e solicitou uma vaga em UTI neonatal, recurso não disponível na Santa Casa de Fernandópolis. Em seguida, o profissional deixou seu plantão.

Falta de acompanhamento
Depois de ser atendida por Penna, Rita ficou internada no quarto do hospital à espera da transferência para o Hospital de Base, mas o hospital negou o pedido, alegando falta de vaga na UTI neonatal. A Santa Casa só voltaria a telefonar para a Central às 8h51 do dia 12, ou seja, mais de 34 horas depois. Nesse período, a Central tentou falar com os médicos que atendiam Rita por 14 vezes: só tiveram êxito em uma, mas falaram com a enfermeira responsável pela internação porque os médicos que cuidavam da paciente não foram encontrados (veja quadro abaixo). O procedimento usual nesses casos é o hospital contatar a Central a cada seis horas pelo menos, segundo o diretor da DRS, Valdecir Tadei.

Contradições
Rita ficou sem atendimento médico por mais de 26 horas seguidas. “Só fui passar por um exame no dia 11 à noite. Até então, não vi mais nenhum médico, só enfermeiro”, disse a gestante. As investigações mostram que Rita foi submetida pela primeira vez a um exame às 20h45 do dia 11, quando o obstetra Osny Renato Martins Luz registrou em seu prontuário médico o batimento cardíaco de apenas um feto. O documento desmente o depoimento de Martins Luz. Aos interventores, ele disse que os batimentos cardíacos dos bebês estavam “normais até as 6h da manhã do dia 12” e que somente às 6h30, quando reexaminou a paciente, não conseguiu ouvir um dos bebês. O médico informou que ao deixar o plantão às 7h da manhã passou a informação ao chefe da obstetrícia Antônio Carlos Flumignan. De acordo com Maria de Lourdes Brizot, em gestações de risco o ideal é fazer o exame de batimento cardíaco três vezes por dia.

Socorro tardio
Somente às 8h51 do dia 12, uma das enfermeiras da Santa Casa de Fernandópolis liga para a Central para atualizar o quadro da paciente. Na chamada diz que Rita está com dilatação total e só então passa a informação de que um dos bebês está morto. Nessa hora, a Central determina a transferência da paciente para o Hospital de Base em caráter de urgência (vaga zero). Já era tarde. A paciente estava em trabalho de parto e não conseguiria aguardar a chegada em Rio Preto. Flumignan acabou fazendo o parto normal às 11h. Apenas nesse momento comunicou Rita que uma de suas filhas havia morrido. Segundo o obstetra Carlos Eduardo Ferreira, é normal a espera da retirada do feto junto com o nascimento do bebê sobrevivente. “A retirada do feto morto antes do parto pode prejudicar o outro”, argumenta.

Desinformação
O relatório da intervenção também indica o desconhecimento de detalhes básicos do funcionamento da saúde pública regional por parte dos médicos que atenderam a doméstica. Em depoimento aos interventores, Flumignan, chefe do setor de obstetrícia da Santa Casa de Fernandópolis há cinco anos, disse que desconhece o mecanismo de vaga zero, pelo qual outros hospitais da região poderiam receber Rita mesmo sem leitos disponíveis em UTI neonatal. Penna disse que “não tem conhecimento de como funciona o mecanismo de vaga zero, só de ouvir falar”. Ele trabalha no setor de obstetrícia há 20 anos. O mesmo disse Osny Luz. Os interventores encaminharam cópia do relatório final para o Ministério Público e Polícia Civil de Fernandópolis, que também investigam o caso. O documento foi remetido ainda para o Conselho Regional de Medicina (CRM) em São Paulo.

Chefe da obstetrícia insiste em culpar Central
O chefe do setor de obstetrícia da Santa Casa de Fernandópolis, Antônio Carlos Flumignan, negou irregularidades no atendimento prestado a Rita de Cássia dos Santos, e voltou a culpar a Central de Vagas da DRS-15 pela morte das duas filhas gêmeas da gestante. Ele deu entrevista ao Diário na tarde de quarta-feira, no intervalo de duas cirurgias no hospital. Contrariando os registros do prontuário da paciente, o médico disse que os exames de batimento cardíaco nos fetos foram feitos “de hora em hora”. Dizendo desconhecer o relatório final da intervenção, Flumignan disse ter feito “todos os exames necessários” em Rita de Cássia, mas não soube dizer quais. “Não me lembro de cabeça.” Em depoimento aos interventores do Estado, o obstetra recuou da declaração dada ao Diário em 18 de dezembro, quando disse um dos fetos “já estava morto havia cerca de 24 horas”. À intervenção, Flumignan “respondeu que não tinha conhecimento do conteúdo da reportagem”.

O médico também afirmou desconhecer a falta de atualização do quadro clínico da gestante pela Santa Casa à Central de Vagas. “Eu já te disse que no dia 11 eu não estava aqui.” Irritado, não quis responder às demais perguntas da reportagem. “Não quero mais falar sobre esse assunto. Só sei que a Santa Casa fez a parte dela. A culpa é deles (Central), que não arrumaram uma vaga (em UTI neonatal), não nossa.” José Roberto Penna, outro médico que atendeu a gestante, não quis se manifestar sobre o caso. “Não tenho nada a declarar. Já disse tudo o que tinha para falar aos interventores”, disse. Osny Renato Martins Luz, que também cuidou do caso de Rita na Santa Casa, não foi localizado. No consultório particular dele em Fernandópolis, a secretária informou que ele estava em viagem para Minas Gerais, e só poderia ser localizado amanhã. O provedor da Santa Casa, José Sechini Junior, disse por meio da assessoria de imprensa do hospital que só vai se pronunciar sobre o caso assim que receber o relatório da intervenção, o que não havia ocorrido até o fim da tarde de sexta-feira. Sechini Junior afirmou ainda que vai procurar corrigir eventuais falhas de procedimento apontadas no documento.


‘Desconfiei do tratamento’
A empregada doméstica Rita de Cássia dos Santos, 28 anos, recebeu com espanto a notícia da conclusão das investigações da intervenção do Estado, que indica falhas no atendimento à gestante na Santa Casa de Fernandópolis. “Pensava que o erro era da Central de Vagas em Rio Preto. Mas sempre desconfiei do tratamento que recebi na Santa Casa”, disse. Mais de dois meses depois de perder as filhas gêmeas, Rita ainda se diz angustiada quando se lembra dos dias em que ficou internada no hospital. “Passei horas horríveis lá, com muita dor e descaso ao mesmo tempo”, diz. A revolta de Rita aumenta quando lembra as horas que ficou sem receber médicos em um dos quartos do hospital. “Depois que dei entrada na Santa Casa, me puseram em um quarto e só fui ver um médico na noite do dia 11. Nesse tempo, só os enfermeiros conversavam comigo.”

A doméstica disse que na noite do dia 11 foi atendida pelo médico Antônio Carlos Flumignan, e não pelo obstetra Osny Luz, como consta no relatório da sindicância. Segundo Rita, logo após o exame de batimento cardíaco nos fetos, Flumignan não disse nada a ela. “Ele me examinou, mas não disse nada. Entrou e saiu calado”, disse a gestante. “Acho que não foi uma conduta correta.” A doméstica voltou a pedir justiça no caso. “Quero que os responsáveis pela morte das minhas filhas paguem pelo erro que cometeram, seja quem for.” O advogado de Rita, Douglas Teodoro Fontes, vai ingressar com uma ação na Justiça por danos morais e materiais contra a Santa Casa de Fernandópolis. “Só estávamos aguardando a conclusão da intervenção para ter subsídio na ação. Sempre suspeitamos que o hospital tinha uma parcela importante de culpa na morte das gêmeas. Agora essa suspeita foi comprovada”, disse.

Médicos não relataram quadro de risco
O médico e chefe da Divisão Regional de Saúde (DRS-15), Valdecir Tadei, reafirmou que a empregada doméstica Rita de Cássia dos Santos, 28 anos, só não foi transferida com vaga zero (em caráter de urgência) para o Hospital de Base por falta de informação da Santa Casa de Fernandópolis, onde ela estava internada. “Foi feito um pedido somente no dia 10 e outro no dia 12 quando ela já estava em trabalho de parto. O primeiro quadro clínico não contemplava uma vaga zero. Embora os profissionais da Central tivessem tentado, ligando por 14 vezes na Santa Casa de Fernandópolis para atualizar o estado da paciente, nenhum médico os atendeu. Não houve relato de quadro grave a ponto de a Central solicitar uma vaga zero para a transferência”, explicou Tadei.

Sobre as declarações de desconhecimento dos médicos da Santa Casa sobre os procedimentos da vaga zero, o diretor explicou que a Central adota o mesmo procedimento há quase dez anos. Questionado se falta UTI neonatal na região, o diretor respondeu que a Secretaria Estadual da Saúde não descarta credenciar mais leitos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Pelo contrário, a secretaria tem disponibilizado recursos e investimento para que as instituições façam tanto a adequação da área física quanto de equipamentos.” Um dos hospitais que está se adequando para a implantação de UTI neonatal é a Santa Casa de Rio Preto. Segundo Tadei, o secretário Estadual da Saúde, Luiz Roberto Barata Barradas, já autorizou verbas para essa finnalidade.

Intervenção
A intervenção feita pelo Estado na Central de Vagas da DRS, após as mortes das gêmeas de Rita, evidenciou, segumdo Tadei, a necessidade de melhorar o processo das transferências de pacientes. “Estamos trabalhando para um maior comprometimento de todos os atores envolvidos. Não só dos médicos da Central de Regulação, mas também dos médicos que encaminham e dos que recebem os pacientes.”


CRM vai abrir sindicância
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) vai instaurar sindicância para apurar suposta negligência e prevaricação pelos três médicos que cuidaram de Rita de Cássia dos Santos na Santa Casa de Fernandópolis: Antônio Carlos Flumignan, José Roberto Penna e Osny Renato Martins Luz. De acordo com a assessoria, a investigação será baseada no relatório final da intervenção da Secretaria de Estado da Saúde na Central de Vagas da Direção Regional de Saúde (DRS-15). O documento foi encaminhado na terça-feira da semana passada ao CRM, mas o conselho não havia recebido o relatório até a tarde de sexta-feira. O promotor Denis Henrique Silva, que determinou a abertura de inquérito policial para apurar o caso, em dezembro, diz que o relatório dos interventores muda a trajetória das investigações. “Até então, as suspeitas recaíam sobre a Central de Vagas, até pelo tom da cobertura da imprensa.

Mas agora há dados concretos que indicam falhas graves da Santa Casa”, disse. O inquérito é conduzido pelo delegado do 2º Distrito Policial de Fernandópolis, José Flávio Guimarães, que está de férias. O delegado substituto, Luís Antônio Antunes, não quis falar sobre o caso. Já o delegado seccional do município, Oreste Carósio Neto, disse não ter informações atualizadas sobre o andamento das investigações. Ele também afirmou que ainda não havia recebido cópia do relatório da intervenção. O inquérito foi instaurado no fim de dezembro, após a divulgação do caso pelo Diário, e não há data para a conclusão das investigações.

Fonte: Diário da Região