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Granella extrai da filantropia as forças para enfrentar a barbárie



Granella extrai da filantropia as forças para enfrentar a barbárie
Durante 24 horas seguidas, ele vive de perto os dramas da humanidade – crimes, cadáveres ensangüentados, acidentes violentos. Findo o plantão, e após umas poucas horas de sono, o fotógrafo e escritor Wilson Granella mergulha na realidade da Associação Filantrópica Henri Pestalozzi, onde é um voluntário entusiasta. Lá, além de ajudar na educação das crianças carentes, ele planta suas bromélias e amoreiras, cuida do pequeno tanque de carpas, constrói e conserta, ergue paredes. Um operário do bom combate, esse Granella, tão profícuo que ainda acha tempo para ser escritor, atividade que desenvolve há mais de 30 anos.

CIDADÃO: Provavelmente a primeira exteriorização da sua necessidade de um contato mais direto com a humanidade foi a manifestação de sua vocação de escritor, sua precocidade de lançar um livro com 19 anos de idade. Como foi esse processo?
GRANELLA: Sempre me considerei um espiritualista, no sentido de que ao fazer - com muito esforço e deficiência - a busca interior nas coisas do dia-a-dia, da mesma forma procurasse entender os outros. Evidentemente isso gerava muitos conflitos e juntando com aquilo que eu procurava traduzir em palavras escritas através dos meus inúmeros livros, a começar com “O Totem do Amor” em 1975, e a partir daí uma dezena de folhetins pela imprensa local entremeados por publicações através de editoras, vem se juntar a isso anos mais tarde a minha entrada no Instituto de Criminalística da Policia Técnico-Científica do Estado de São Paulo, o que iria me colocar frente a frente com a dor explícita de cenas de suicídios, homicídios, de cenas de acidentes de trânsito violentos.

CIDADÃO: Como uma alma de poeta convive com essa realidade?
GRANELLA: Por um momento eu achei que seria mais um a buscar o divã do psiquiatra, me encher de remédios, mas consegui escapar com vida disso tudo porque naquele exato momento em que assumi as funções de fotógrafo pericial, trombando com essa realidade cruel que passa desapercebida pela grande maioria - porque ela só toma contato através da mídia, mas não coloca as mãos literalmente nessa ferida -, nesse exato momento então eu perguntei: “Meu Deus do céu, será que vou segurar essa onda, ou vou enlouquecer?”, eu cheguei à casa espírita pelas próprias pernas e imediatamente também me juntei a essas crianças aqui do bairro onde estamos localizados, no Parque das Nações, que era um campo de periferia, bastante problemático 20 anos atrás. Ao me juntar a esses pais e essas crianças, personagens de necessidades de toda ordem, fui com elas, dividindo e também aprendendo as coisas do dia-a-dia. Esses 20 anos têm sido de troca de experiências, o que evidentemente tenho que reconhecer, fez com que ao me defrontar profissionalmente com esses dramas violentos na polícia científica eu não fosse ao psicanalista, aos remédios.

CIDADÃO: Como foi o começo da Associação Filantrópica Henri Pestalozzi?
GRANELLA: Há 25 anos passados, existiam aqui no bairro que ainda era de chão batido esses pequenos lotes que outros companheiros - que não estão mais na casa - adquiriram e com o esforço desses companheiros e mais pessoas da sociedade local acabou se erguendo então a Casa Espírita Missionários da Luz, e quando cheguei há 20 anos implantei a sopa fraterna. Chegamos a atender, todos os sábados, 300, 400 pessoas por mais de uma década. Urgiu então a necessidade de dar um direcionamento legal ao projeto assistencial dessa casa espírita. Foi onde, ao lado de companheiros, fundamos a associação Henri Pestalozzi que hoje vocês acompanham. Ela abriga no seu espaço físico 100 crianças, que são atendidas pelo PETI, que é o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil.

CIDADÃO: Você privilegiou neste espaço físico a natureza, já que plantou muitas árvores nativas da nossa região, mais de 50 espécies. Você considera isso aqui o seu paraíso? É aqui que você se encontra com você mesmo?
GRANELLA: Tenho que confessar que eu não sei se isso aqui é meu paraíso, mas é certamente meu lugar de repouso, principalmente quando você deixa um plantão na Policia Científica de 24 horas e a partir daí quer desaparecer do circuito. Recarregar suas baterias de alguma forma. Eu também sou um dos responsáveis na Pestalozzi, e há necessidade da presença masculina na entidade, pela carência da mão-de-obra, pelas dificuldades enfrentadas pela entidade. Eu alio a essa necessidade a minha necessidade de fuga dos dramas do cotidiano, então vou plantar árvores, pintar uma parede.

CIDADÃO: Você já foi na vida escritor, jornalista, fotógrafo. Na Henri Pestalozzi, quais foram as outras profissões que você aprendeu?
GRANELLA: Pedreiro, um pouco de marcenaria, encanador, pintor. Não me atrevo a mexer com eletricidade, mas ainda assim, às vezes arrisco levar um choque. Jardineiro... Às vezes estou aqui com a enxada na mão, chegam voluntários da faculdade e me perguntam: quem é o senhor? Eu respondo que sou jardineiro e fica por isso (risos).

CIDADÃO: E a relação direta com a criança carente? O que você aprende com essa relação?
GRANELLA: A tendência natural do adulto é não ter muita paciência com a criança. Mas a criança carente é carente em todos os sentidos. Às vezes são crianças maltratadas, violentadas na sua condição física, moral, intelectiva e se hoje você ao tentar acarinhar essa criança ela simplesmente te repele, ela quer distancia de você, com um pouco de carinho você vai cercando essa inquietação dela. Com o tempo ela romperá esse distanciamento. Ela vai caminhar um pouco mais, vai chegar e te abraçar. Ao longo desses 20 anos eu tenho que reconhecer que nós aqui não fizemos grande coisa, mas o que existe de mais concreto que nós conseguimos foi tirar um pouco da violência da criança. A criança rebelde, inquieta, fugitiva do afeto, do carinho, ela que chega xingando e quebrando, depois você vai encontrar essa criança mais dócil e respeitando as coisas. Você tira a violência dela, acredito que seja um passo importante e é o que eu tenho mais identificado ao longo desses 20 anos.

CIDADÃO: Você foi criança em outros tempos e outras circunstâncias totalmente distintas das que estão aí hoje. Você se preocupa com o mundo moderno?
GRANELLA: Eu já devo ter dito isso antes: por paradoxal que seja, nunca no mundo se amou tanto. Você vê a solidariedade crescendo um pouco por dia, a comunicação encurtando distâncias no mundo inteiro e as pessoas e as nações se ajudando entre si dentro desses cataclismos naturais que envolvem o ser humano. Evidentemente que na grande imprensa, uma pessoa, um louco dentro da sua atitude, consegue desequilibrar um pouco e chamar mais atenção. Isso então dá a impressão para todos nós de que a violência aumenta quando não é verdade. Poderíamos pegar Fernandópolis, temos 60 mil habitantes, a violência está crescendo aí na cidade, vemos assalto a mão armada, roubos, mas veja bem, se reunirmos todos os bandidos, os delinqüentes, todos caberão numa sala de aula e nós somos 60 mil. Então é um número pequeno. Só que dois ou três fazem um barulho grande. Nunca no mundo se amou tanto e há necessidade de realmente segurar a criança, não temos outro caminho porque quando digo formar a criança é dar a estrutura física para ela, colaborar na manutenção de sua vida física e cuidar da alma da criança através de estudo, do carinho, da efetividade, do respeito, passando a ela a responsabilidade como cidadã do mundo e integrá-la à sociedade de vez para que ela possa ser amanhã um homem de bem, pessoa de bem. Não existe aí formula mágica se não cuidarmos da criança - nós, a sociedade paga um preço, amanhã teremos um cidadão se voltando contra si mesmo e aqueles que o cercam. Não dá para você se encastelar e achar que as coisas não estão acontecendo à sua volta. Isso vale para a criança da periferia, a criança carente, a criança atendida por todas entidades e fica valendo também para aquele que tem no seu lar crianças e é possuidor de toda posse econômica, porque nós temos pessoas felizes e infelizes em casebres e também vivendo em palacetes. Temos também crianças boas e marginais em casebres e nas mansões.

CIDADÃO: Você começou com o “Totem do Amor”, já fez muita coisa na vida. Mas o que nunca deixou de lado foi o ato de escrever. Por quê?
GRANELLA: Eu tenho escrito muito pouco ultimamente. Já houve um período em que escrevi muito, hoje muito pouco ou bem menos, em face dessas responsabilidades, mas eu diria que é sim um alimento, uma necessidade de você buscar sempre algumas respostas para você mesmo - e quando você, nessa busca, consegue encontrá-las, você tenta passar para o papel. Levar essa experiência para outras pessoas. Eu diria mais, depois de 19 anos de Polícia cientifica, só depois desse momento é que eu encontrei condições favoráveis e psíquicas para escrever um livro e nesse livro me colocar como testemunha ocular dos fatos e ocorrências do meu dia-a-dia na atividade policial. Meu próximo livro, que segundo a editora será lançado no primeiro semestre de 2008, um romance que se intitula “Sombras arrependidas”, no qual pela primeira vez coloco ao leitor de maneira explicita e dura, carregando nas tintas faces da minha atividade como fotografo técnico policial, porque sou testemunha das muitas faces que a morte tem, então o livro “Sombras arrependidas” é um livro duro, mas pela primeira vez encontrei coragem de começar a narrar esses fatos da minha experiência profissional.