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O surdo que virou atleta da Seleção Brasileira de Handebol



O surdo que virou atleta da Seleção Brasileira de Handebol

Tiago Marçal de Morais, 28 anos, nasceu surdo, mas encontrou no handebol a porta aberta para inclusão na sociedade. Hoje é formado em Educação Física, licenciatura e bacharel, atua como cuidador social na Apadaf – Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos de Fernandópolis – onde chegou em 1999, e também coordena a modalidade handebol dentro do projeto “Bom de Escola, Bom de Esporte”, da Secretaria Municipal de Esportes e Lazer de Fernandópolis.Foi no handebol que encontrou motivação para vencer as gozações de colegas que viam na surdez um empecilho para ele se tornar um jogador. “Hoje eles me parabenizam e pedem desculpas”, diz. Tiago é atleta de handebol da Seleção Brasileira dos Surdos; tricampeão brasileiro; conquistou o quarto lugar no Campeonato Mundial de Handebol para surdos em 2018 e participou da Surdo Olimpíadas em 2017 (Turquia). Nessa entrevista ao CIDADÃO, ele conta um pouco da sua vida, do apoio da Apadaf, fala do projeto do handebol e cobra maior acessibilidade aos portadores de deficiência. Veja:

Você nasceu surdo e encontrou no handebol a porta para inclusão?

Sim, eu nasci surdo e comecei a usar aparelho com quatro anos. Sou surdo moderado do lado esquerdo e surdo profundo, não ouço nada, do lado direito. Comecei a praticar o esporte, primeiro o futebol e depois fui conhecer o handebol na escola. Gostei muito, tanto que treinava na escola e sozinho. Descobri o esporte dos surdos em São Paulo, entrei em contato com o pessoal e passei a integrar a seleção paulista dos surdos. Fiz a seletiva da Seleção Brasileira dos Surdos de Handebol e fui convocado. Participei do campeonato da Surdo Olimpíada no ano de 2017 e depois o Campeonato Mundial em 2018, disputado em Caxias do Sul (RS), onde ficamos em quarto lugar. O Brasil está cada vez mais evoluindo no handebol para surdos. Só que tem um detalhe: a gente banca do nosso próprio bolso a participação, não tem apoio, não tem patrocínio. Falta esse apoio para motivar a gente.

Qual o papel da Apadaf ao longo de sua vida?

Eu estou na Apadaf desde 1999. Foi aqui que aprendi a Língua Brasileira de Sinais (Libras), que me abriu um mundo de oportunidades. Aprendi muita coisa. Antes de vir para a Apadaf eu não entendia nada. Aqui comecei a aprender as coisas do meu dia a dia e hoje trabalho aqui, sou cuidador social. Dou aulas de Libras, além de várias outras atividades para envolver todos os assistidos.

Você coordena, dentro do projeto Bom de Escola, Bom de Esporte, a modalidade handebol. Como está o desenvolvimento dessa atividade?

O meu objetivo é envolver os atletas para que eles alcancem a evolução dentro do esporte, buscando sempre um futuro melhor, quem sabe até se tornar um jogador profissional, seguir o sonho deles. Além dos treinos, vamos buscar participação em campeonatos, já estamos nos filiando a uma Liga de Handebol da Região de Dracena, vamos disputar os Jogos Regionais. Estamos trabalhando com equipes masculina e feminina em várias categorias, a Sub 14, Sub17 e Sub 18 e o Adulto. O adulto temos apenas a equipe masculina, mas pretendo também trabalhar na montagem de uma equipe feminina.

Onde vocês treinam?

A gente treina em diferentes pontos da cidade. Aos sábados das 13 às 15h, na Escola Estadual Afonso Cáfaro dentro do Projeto Escola da Família; aos domingos das 9 às 11h, no ginásio de esportes “Dr. Querton Ribamar Prado de Souza – Beira Rio”; de terça-feira, das 18 às 19h30, na escola EELAS; e de sexta-feira, das 18 às 20h, na escola SESI. Recebemos atletas a partir de 11 anos de idade.

O interesse está aumentando pelo handebol?

Muito. O pessoal está adorando, animado, todos estão se esforçando nos treinamentos. É muita procura. O handebol está crescendo, basta ver que antes a gente iniciava com 10 alunos. Hoje já temos mais de 50.

Como esporte, qual a mudança que o handebol provoca na vida dos jovens?

O handebol exige muita disciplina. Por exemplo, não se pode reclamar da arbitragem, senão toma dois minutos de suspensão, fica fora do jogo. Tem que haver respeito com a arbitragem, não é igual ao futebol, onde todos reclamam e o juiz não faz nada. É um esporte que influi no comportamento do jovem, eles melhoram no relacionamento com a família, na escola. Jovens que andaram fazendo coisa errada, vieram para o handebol e hoje são outras pessoas. Então, mudou a vida deles. Eu cobro esse respeito, cobro desempenho na escola. Então posso dizer que o handebol chegou para mudar a vida desses jovens e isso está sendo muito bom. Outra coisa importante, é tirar a garotada da rua, da ociosidade, para não se envolver com coisa errada.

A surdez, em algum momento da vida, representou um empecilho para você?

Já sofri muito, com gozações de amigos, quando dizia para eles que ia me tornar um jogador. Hoje, recebo parabéns deles e até com pedido de desculpas. Também não tive muito apoio. Eu tenho três alunos surdos e os professores de educação física nunca motivaram eles. Tem um aluno que nunca praticou esporte e está começando com a gente no handebol, participa de todos os treinos, não falta uma vez. Um deles, o Danilo Batista de Aviz, foi convocado junto comigo e fomos tricampeões no ano passado com a Seleção Paulista dos Surdos. A deficiência auditiva, ou qualquer outra, não pode ser motivo de impedimento de nada na vida. Tenho um amigo ouvinte que é profissional no Pinheiros em São Paulo. Então, um de nós pode ser também. Por que, não? Acho que no Brasil precisaria dar mais oportunidades para os deficientes. A única diferença entre nós é deficiência auditiva. No mais somos iguais, com o mesmo potencial.

Você ouve, porque usa aparelho no ouvido esquerdo, mas também se comunica pela Língua Brasileira de Sinais?

Sim, sou considerado bilíngue, quer dizer, primeiro a minha Língua Brasileira de Sinais e depois a Língua Portuguesa. 

Hoje a gente vê cada vez mais pessoas utilizando a Língua Brasileira de Sinais e um exemplo disso foi a esposa do presidente, Michele Bolsonaro, fazendo um discurso em Libras na posse. Essa forma de comunicação está se popularizando e isso vai ajudar os deficientes auditivos?

Vai ajudar bastante. Mas, ainda enfrentamos problemas de acessibilidade. Tenho uma aluna na Apadaf que precisa de interprete em sala de aula e não tem. Ela está brigando pelo direito dela. A Prefeitura está buscando conseguir uma intérprete em Libras para atender um aluno de 4 anos que precisa desse apoio. Acredito que, quando formos resolvendo essas questões, vai ajudar bastante na acessibilidade. Mas, temos que avançar, porque chega na escola, a pessoa com deficiência fica estressada porque não está entendendo nada. Por isso a importância de um intérprete.

A Apadaf tem oferecido cursos de Libras?

O Brasil inteiro precisa saber Libras, porque é a nossa língua. Quando vamos ao banco e não tem ninguém que sabe Libras, não tem como a gente se comunicar. E assim em outas situações, numa loja, no hospital, no consultório do médico. É essa acessibilidade que estamos defendendo, que todos falem a Língua Brasileira de Sinais. Isso é muito importante. Quando a Apadaf abre cursos, a procura tem sido boa, cada vez mais pessoas mostram interesse por Libras que é realizado às terças e sábados. Não é aprender Libras porque é bonito. É aprender Libras porque quero me comunicar com os surdos.

A sua namorada, Eloá Fernanda Stefani Topan, que também é deficiente auditiva, chegou a propor no Parlamento Jovem em 2013 um projeto de lei que coloca Libras como matéria obrigatória do currículo escolar. Isso levaria a nos aproximar do Brasil ideal? Tem esperança?

Tenho esperança. Nós, surdos, estamos lutando para isso. Hoje sou formado em Educação Física e minha namorada, a Eloá, é formada em Pedagogia e luta muito por isso. Então, todos têm que ter essa oportunidade. A Eloá, quando ainda era estudante do ensino médio, foi representar Fernandópolis no Parlamento Jovem em Brasília e apresentou o projeto que inclui Libras no currículo escolar. O projeto dela foi aprovado em primeiro lugar, mas até hoje não foi encampado por um deputado para que possa virar lei. Ainda estamos lutando por isso.

Você se considera um exemplo de superação para os jovens, deficientes auditivos ou não?

Se ele vê o professor, deficiente auditivo, chegar onde chegou, ele sabe que também é capaz. Então, sou um exemplo.

Qual sua maior preocupação?

Sem dúvida, a falta de maior acessibilidade em nossa cidade. Hoje, por exemplo, Fernandópolis poderia ter uma Central de Interprete para auxiliar o surdo naquilo que ele precisar, ir ao banco, ao médico. Isso daria independência e autonomia para o surdo profundo. Ele precisa de ajuda, porque sua única língua é Libras.