A psicóloga e jornalista Regina Lúcia da Silva Vicente Pereira passou por uma experiência marcante há poucos dias: um de seus filhos aprovado no vestibular de uma faculdade de Fernandópolis foi vítima de trote abusivo, junto com outros calouros. Os jovens foram embebedados e tiveram suas roupas íntimas retalhadas, entre outras selvagerias. Mesmo sendo uma profissional experiente no campo da Psicologia, Regina não tinha, evidentemente, como se despir do papel de mãe. A angústia que sentiu a levou a escrever um artigo sobre o assunto mas, em conversa com a editoria de CIDADÃO, decidiu-se que a discussão poderia ser ampliada numa entrevista para esta coluna, que contou com a participação da repórter Daniele Gabriel. (VicRenesto)
CIDADÃO: Você acaba de passar por uma experiência difícil - sua filha ingressou na faculdade e sofreu, junto com os colegas, um trote violento e humilhante. Fale dessa experiência como mãe. O que você viu e que sensação sentiu?
REGINA: Eram 19h quando meu filho ligou e me pediu para ir para casa porque ele não daria conta de cuidar sozinho da irmã, que não estava bem. Fiquei angustiada. Quando cheguei em casa ela estava jogada, totalmente alcoolizada e confusa. Quando perguntei o que tinham feito, ela me respondeu que a fizeram beber, jogaram cerveja neles e os faziam rolar na areia, cortaram a calcinha e o sutiã. Era nítido que a experiência emocional foi pesada demais. O sentimento que me veio foi de revolta por ver minha filha naquele estado. Isso não aconteceu só com ela, mas com todos os calouros que compareceram. Minha filha estava com o olho inchado porque caiu água oxigenada no olho dela, então são coisas que não podem acontecer.
CIDADÃO: Por que o comportamento coletivo tende à violência? Por que uma pessoa sozinha é pacífica e essa mesma pessoa em grupo se torna violenta?
REGINA: É o inconsciente coletivo. Todos nós temos uma demanda de voracidade, agressividade, que é o instinto básico. Inveja, voracidade e agressividade. Nós nascemos com isso. O meio externo direciona esses instintos para o lado bom ou ruim através da criação, como os pais lidam com essa criança em desenvolvimento. Dependendo do desenvolvimento emocional isso fica ameno porque agressivo todo mundo pode ser quando é atacado, essa voracidade de querer ter mais e mais.Atualmente é fácil notar que a mídia induz as pessoas a quererem ter, ter e ter e a inveja é um fato. Você não tem o que o outro tem, é aquela coisa: Nossa, gostaria de ter também!, mas se esse é um processo tranqüilo dentro da pessoa, ela não vai destruir o do outro só porque não tem. Ela tolera. Fácil não é, mas tolera. Assim, numa situação como essa do trote, as pessoas acabam entrando na dança. Muitos não agem, mas também não fazem nada para proteger, para impedir. Penso que quem faz tem prazer com aquilo. A questão de pintar o cabelo. Para que uma pessoa precisa estragar o cabelo da outra? Está na inveja. Por que uma pessoa precisa colocar a outra para rolar na terra, ou humilhar? Acredito que a explicação pode ser esta, a constituição básica de cada um.
CIDADÃO: Existe muito estudante que diz que o trote existe para integrar os calouros com os veteranos. Você concorda com essa afirmação?
REGINA: Esse tipo de trote, não só se fosse um trote construtivo. Então os novos estão chegando, não conhecem nada. Muitos não conhecem o que é uma faculdade, não tem a noção, quando chegam é como se eles fossem umas telas brancas na qual registram todas as experiências. Se o primeiro registro é de violência não tem integração, tem ódio, não tem um pensamento assim: Nossa, como são legais meus colegas.
CIDADÃO: Como seria um trote saudável?
REGINA: Se vai pintar a pessoa que pinte algo interessante. Não precisa ser careta, mas se vai fazer alguma coisa com a pessoa que a preserve de situações humilhantes, não há necessidade do contato físico, por que cortar calcinha, sutiã, embebedar a pessoa? Embebedam a pessoa e a jogam na piscina, correndo risco de morte, como aconteceu na Medicina da USP há alguns anos. E se o universitário está sozinho em outra cidade e não tem um respaldo familiar, ou um amigo que o ajude a sair de uma situação mais perigosa, vai chegar em casa de que jeito? Aos cuidados de quem? O mais grave nisso é tirar a consciência da pessoa. Toda brincadeira que fica com sentido de brincadeira é saudável, vai ficar na lembrança como algo bom. O trote teria que ter um sentido de integração o aluno na faculdade. Então coloca lá para trabalhar um dia na faculdade, cada um em uma função, de uma forma divertida, na biblioteca, na cantina, fazendo faxina na faculdade; desse modo vão conhecer a faculdade, vão conhecer as pessoas. Eles deixam as pessoas sem recursos para poder se defender. Pensa se não é muito mais agradável.
CIDADÃO: As faculdades de Fernandópolis se opuseram ao trote. Tanto que há um outdoor na avenida expressando isso. Porém, fora do campus a universidade não tem controle. De quem é essa responsabilidade?
REGINA: Eu penso em um conjunto de responsabilidades. Começa com os pais que criam pessoas que trazem a formação delinqüente.Alguém que tem prazer muito grande em ver uma pessoa em um estado humilhante. É o conjunto da formação dos filhos.Um pouco vem da faculdade, que poderia orientar, direcionar, e ficar ligado no que acontece. A polícia também deve prestar atenção nos trotes. É um conjunto de cuidadores, teria que ter segurança, alguma pessoa para ver se existe exagero e controlar. O jovem não tem essa noção de limite, hoje em dia, a gente vê essa noção piorar. O jovem tem essa coisa do posso tudo. Quero tudo e faço tudo. Precisa muitas vezes mesmo ser vigiado.
CIDADÃO: Como a psicologia explica a realidade do jovem de hoje, face à extrema exposição que ele tem à violência?
REGINA: Muitos pais fazem essa pergunta. Indagam se precisam cortar os vídeos que exibem violência. Não tem como evitar que o jovem esteja em contato com a violência. O que a gente percebe é que se a pessoa não tem contexto violento dentro dela, isso não a afeta. É necessário encontrar eco dentro dela para que se torne violenta. Se você assiste Tropa de Elite você não vai sair matando todo mundo. É preciso haver uma referência interna. É identificação e não influência. A pessoa pode não ter pensamento de cortar a roupa da outra e fazer rolar na terra, mas se ela vir os outros fazendo aquilo e despertar dentro dela algo que já existe, ela vai e faz numa boa. Mas quem não tem acha aquilo tudo um horror.
CIDADÃO: A humilhação causada pelo trote deixa marcas emocionais?
REGINA: Penso que sim, porque a partir do momento que você subjuga uma pessoa, ela fica com aquela sensação de ter sido abusada. Eu associo com a ditadura, aquela coisa de você colocar a pessoa numa tortura. Conversando com as pessoas que foram torturadas, notamos que até hoje elas têm marcas de ódio, de ressentimento, querem vingança, dinheiro para reparar o que sentiram. Claro que o trote não chega a uma proporção tão grande, mas não deixa de ser uma tortura da maneira como esta sendo realizado. Deixa seqüelas e conseqüências, dependendo da constituição emocional da pessoa. Quanto mais frágil ela for, mais seqüelas ela terá. Quem não tem um respaldo dos pais fica com aquilo guardado, e precisa chegar na faculdade no outro dia como se nada tivesse acontecido, porque quando eles reclamam do trote são perseguidos durante todo o ano.
CIDADÃO: Seria um desejo de vingança de quem já sofreu com o trote? O calouro de hoje tem propensão a aplicar o mesmo trote quando for veterano?
REGINA: Provavelmente, porque a desculpa deles é a de que alguém já fez isso com eles anteriormente. Tudo isso é interessante para pensar e poder ajudar. Seria o caso de desencadear uma campanha com apoio das universidades e criar um trote saudável. Transformar o trote. Para os pais, fica a orientação de sempre ouvir o jovem e acolher o filho nesse momento. O começo de uma vida universitária é uma transição. O jovem sai da adolescência e entra na vida adulta, sai do contexto de protegido e passa a ter uma vida mais independente. A função dos pais é estar por perto. Fornecer aos filhos uma liberdade assistida. As diretrizes dos pais devem ser o afeto, a orientação e a liberdade com cuidado.