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Uma lição de vida



Uma lição de vida
Maria Aparecida Laurindo Polizeli tem 42 anos, é casada com Luis Anselmo Polizeli, mãe de Maiara, 22 anos, Sofia, 7, e Artur, 2 anos e sete meses. É formada em Ciências, possui habilitação em Matemática e Física, fez mestrado na Unesp de Bauru. Se fosse uma pessoa de vida “normal”, já seria um excelente currículo. Mas, em se tratando de alguém com as circunstâncias de Maria, pode-se afirmar que ela é uma mulher vitoriosa. Ao final desta entrevista, o leitor vai entender por quê. Aliás, a música de Milton Nascimento que fala que “é preciso ter fé, é preciso ter força, é preciso ter gana” se chama, justamente, “Maria, Maria”.


CIDADÃO: Gostaria que você contasse sua vida.
MARIA: Minha vida foi sempre muito difícil, sempre lutei muito para estudar. A minha família não tinha dinheiro, meu pai “tocava” roça, café, e quando terminei o 3º colegial comecei a fazer o magistério, que naquela época só tinha particular, era na escola 22 de Maio. Eu trabalhava de doméstica para conseguir pagar os estudos. Quando chegou no mês de abril a mensalidade do curso aumentou, coisa mínima, mas eu não pude continuar pagando porque o que eu ganhava era exatamente o valor do meu curso. Cheguei a pedir um pequeno aumento para minha patroa, mas ela não aceitou e o que minha mãe e minhas irmãs ganhavam era o suficiente para pagar apenas as contas fixas da casa, como água, luz e gás. Com tudo isso eu precisei parar de estudar e nunca me esqueço quando minha mãe disse que não era para eu desistir. Nesse período também eu já dava aula de catecismo para adultos, então eu já gostava disso, de dar aulas, de ensinar, passar para os outros o que eu sabia. Uma outra coisa que minha mãe me disse e que eu guardo até hoje é que se eu gostasse tanto de estudar, um dia eu ia voltar. Isso aconteceu depois de 10 anos (emoção). Sempre fui boa aluna, tirava boas notas porque gostava de estudar mesmo. A única matéria que eu nunca consegui me sair muito bem foi o Inglês. Eu me lembro da minha professora Erléa, eu só tirava C. Era a única matéria.

CIDADÃO: Como foi o retorno às salas de aula?
MARIA: Quando voltei a estudar, depois de 10 anos, eu trabalhava na prefeitura, tinha passado naquele concurso de 1988, do Banespa, que não chamou ninguém. Meu cunhado era vivo na época e ele me aconselhou a prestar vestibular de outra coisa porque meu pensamento era entrar no banco e fazer administração de empresas. Foi aí que resolvi fazer Ciências, em 2 anos. Lembro também que foi muito difícil, porque eu trabalhava na prefeitura o dia inteiro, depois ia para a faculdade em Votuporanga e passei por muitas dificuldades. No primeiro ano fui todos os dias com a mesma calça, uma que tinha um velcro na lateral e usava uniforme da turma, porque não tinha dinheiro (emoção). As pessoas, os colegas de classe, me deixavam de lado no começo, mas depois quando chegou o terceiro semestre eu comecei a me destacar porque eu só tinha 10 de nota. Aí os mais bonitinhos, mais bem arrumadinhos, que matavam aula e iam para a cantina, começaram a se aproximar para pedir trabalhos, explicações e eu fui ficando mais popular (risos). Foi nesse período que as pessoas começaram a me enxergar além da aparência, e repararam no meu interior. Quando eu fazia Matemática tinha gente que queria me pagar para eu fazer a prova para eles, queriam que eu ficasse do lado de fora passando bilhetinhos. Me davam presentes como perfumes e roupas (risos).

CIDADÃO: E depois da formatura? Você fez outro curso, não é?
MARIA: Quando resolvi fazer faculdade de Física em Rio Preto bati de frente de novo com a dificuldade. Eu consegui fazer um ano e meio em um ano, trabalhava o dia inteiro, às 16h eu saia, pegava o ônibus da prefeitura para Fernandópolis, quando era quinze para as seis eu pegava o ônibus para Rio Preto. Chegava aqui de volta quinze para uma da manhã e quando era seis e meia da manhã eu já estava em frente à Loja Viper pegando o ônibus para Macedônia porque eu tinha que chegar lá, deixar minhas coisas e correr para o trabalho. Nessa época eu fiquei na casa da Maria José. Ela brincava que eu era um hóspede fantasma, porque a gente nem se via. Eu chegava de madrugada e meu colchão já estava arrumadinho na sala (emoção). Uma amiga minha também estudava comigo e dormia lá também. Por causa da dificuldade, a minha amiga fazia farofa para a gente comer, fazia também comida congelada. Foram muitas as vezes que nós comemos acerolas congeladas, engolíamos até a semente, o caroço, porque era o jantar da gente. Eu me lembro que nessa época eu estava tão magrinha que teve uma campanha para doar sangue eu não pude doar porque pesava 48 quilos.

CIDADÃO: E como você arranjava tempo para estudar?
MARIA: Na madrugada. Muitas vezes eu chegava e ia rever a matéria. Eu fiz um ano e meio em um. Um professor de outra faculdade fez as contas para mim e eu ia alternando as presenças e as faltas para não estourar em 75% e para não ter presença em duas classes diferentes no mesmo dia. No final deu tudo certo.

CIDADÃO: Você passou duas vezes no mestrado e não foi fazer. Só na terceira, em Bauru, que você resolveu encarar os estudos. Por que?
MARIA: Primeiro passei na Federal de São Carlos, como era ruim em Inglês e sabia que não ia conseguir resolvi primeiro aprender Inglês. Depois fui fazer o nivelamento em Ilha Solteira para fazer mestrado em Física. Lembro que muitas vezes eu esperava o ônibus no trevo de Estrela D´Oeste para ir para lá porque eu dava aula nessa cidade. Fazia a marmitinha na escola e ia. No final desse curso teve a prova do mestrado e em seguida a entrevista. Dessa entrevista só entraram três e eu fui uma delas. Eu estava grávida da Sofia e comecei a fazer uma matéria, fiz quântica. Quando foi iniciar o outro semestre a minha filha nasceu aí ficou muito difícil. Ai eu fiquei um semestre de licença.
No final do ano meus amigos me chamaram para prestar a Unesp de Bauru e na hora achei muito difícil porque era longe, eu não tinha dinheiro. Foi aí que um amigo meu, o Cabral, me deu um “chacoalhão” e eu resolvi encarar, fui para a entrevista e passei. Mas como ir? E para ajudar eu peguei duas disciplinas em um único dia, era uma quinta-feira. Meu pai me levava, o meu marido levantava às 3 da manhã, fazia a comida e eu levava pronta. Enquanto eu ia para a aula, meu pai armava uma rede e ficava lá dormindo, descansando. A gente chegava em casa de volta mais de 10 da noite. Isso foi o ano inteiro.
No segundo semestre eu tive umas disciplinas em Ilha Solteira. Foi aí que chamei alguns amigos para ir junto, como ouvintes. A minha amiga Maria José foi uma delas. Quanto mais gente ia, mais eu gostava, porque nunca tive ambição de querer tudo só para mim. Nós éramos num grupo bem grande. Eu lembro que a gente dormia lá porque era sexta, sábado e domingo. Também foi uma época difícil porque eu nunca tive dinheiro para comer, como eu tinha filho pequeno me preocupava primeiro com o bem-estar deles, depois comigo. Eu lembro que andava com um mochilão, que eu tenho até hoje, e o enchia de miojo. Hoje eu não posso nem ver isso, porque eu comia muito, ou melhor, só isso. Lembro também que meu pai tinha horta e eu carregava junto na mochila com o macarrão. As pessoas me convidavam para ir ao restaurante e eu sempre despistava. Eu lembro que quando a dona Maria José percebia que estava chegando a hora do almoço ela arrancava um ticket dela e me dava (muita emoção) para eu comer junto com eles. Nesse período eu peguei uma anemia muito forte. Nesse ano minha filha mais velha, a Maiara, ficou doente. Ela tem hidrocefalia desde pequena, por causa de uma complicação no parto e naquele ano a válvula que ela tinha na cabeça entupiu. Ela ficou ruim e eu fiquei um mês sem freqüentar as aulas. A pressão da cabeça dela aumentou muito e ela não sentia mais as pernas, não andava mais. Foi quando eu a internei por nove dias em Rio Preto, no Hospital de Base, e nós descobrimos que existia uma operação que não precisaria mais usar válvula. É uma tecnologia bem avançada, com fibra óptica. Hoje ela não usa mais válvula, mas ela quase morreu. Quando voltei para o mestrado tinha as tarefas, a gente tinha que ler muito, e eu não tinha dinheiro para comprar os livros, então xerocava. Era preciso apresentar um trabalho com duração de quatro horas, começando com uma ciência básica, evoluir para a tecnologia e uma aplicação disso. Como o aparelho que minha filha usou tinha uma fibra óptica eu falei sobre isso. Consegui uma entrevista com o médico que operou minha filha, não como mãe, mas como estudante de mestrado. No final da minha apresentação meu professor se levantou e me aplaudiu (emoção).

CIDADÃO: Depois que o mestrado terminou você conseguiu aulas na Fundação de Fernandópolis. O que melhorou em sua vida?
MARIA: (emoção) Eu e minha família conseguimos comer melhor, morar melhor e hoje podemos oferecer ao meu pai, que é doente, mais qualidade de vida. Se Deus quiser, terminarei de pagar no mês que vem o empréstimo que fiz para conseguir arcar com as despesas do final do mestrado. A primeira coisa que vou fazer é um plano de saúde para minha família (emoção)

CIDADÃO: Qual é o seu recado para as mulheres?
MARIA: Que nunca desistam dos seus sonhos (emoção).