Geral

Val, a mãe de quase 100 filhos



Val, a mãe de quase 100 filhos
A professora de Química Valdelice Maria Gonçalves, a “Val”, não teve filhos biológicos. Foi uma opção de alguém que, na verdade, acaba sendo a mãe de dezenas de crianças e adolescentes carentes e/ou com deficiências físicas. É que Val é militante da Associação Filantrópica Henry Pestalozzi, uma entidade que cuida de jovens e presidida por Wilson Granela, seu marido. A irrequieta Val e o “zen” escritor Granela se complementaram pelas diferenças de personalidades e de atividades em torno de um interesse comum: fazer o bem ao próximo. Val, que nasceu em Monte Aprazível, chegou a Fernandópolis no dia 4 de agosto de 1980. Nunca mais quis sair da cidade. Hoje, ela é vice-diretora da EE Saturnino Leon Arroyo, onde realiza importante trabalho de inclusão social – com jovens, claro. Por essas e outras é que a professora merece (também) receber homenagens no Dia das Mães.


CIDADÃO: Como foi que nasceu a instituição Henry Pestalozzi?
VAL: De certa forma, nós “herdamos” o Centro Espírita Missionários da Luz. Na época, já desenvolvíamos projetos importantes por lá, como a Sopa Fraterna. Chegamos a atender 400 pessoas em alguns sábados. Naquele tempo, a favela fora mudada para aquela região, do final da Rua Pernambuco. Concebemos, então, um braço assistencial dos Missionários da Luz, que fosse cristão, mas não tivesse um fundo religioso. Uma visão de assistência e educação. Em princípio, era só assistencial, mas depois fomos montando os projetos e hoje a Associação Filantrópica Henry Pestalozzi trabalha com projetos educacionais. Temos 100 crianças, divididas em dois turnos, com atividades voltadas para a formação e para propiciar às crianças acesso a coisas que jamais tiveram. Elas são excluídas, nunca haviam ido a um shopping center, a um cinema, a um clube. De vez em quando as levamos a esses lugares, para que saibam como é e para mostrar que elas podem incluir isso na vida delas, se realmente se prepararem adequadamente, se aproveitarem chances que a vida oferece. A inclusão também depende de cada um.

CIDADÃO: Qual é o critério para aceitar um jovem no projeto?
VAL: Temos 80 crianças que fazem parte do projeto de erradicação do trabalho infantil, o PETI. São crianças que estão numa faixa de risco – estavam na rua, em condições inadequadas. Há mães que exploram o trabalho infantil. A mãe põe o maiorzinho para cuidar dos menores, limpar a casa, cozinhar. Uma vez chegou lá uma menina que só queria saber de varrer compulsivamente. Ela não brincava. Levou dois ou três meses para que ela entendesse que estava ali para brincar, que podia brincar. E tinha só 7 anos! Ela não conhecia o lúdico. Essa menina me marcou muito. Eu estendia a mão para ela e ela saltava para trás. Esse gesto, de estender a mão para fazer carinho, para ela significava agressão. Esse trabalho busca resgatar cada fase que não foi vivida pela criança, para que no futuro ela não tenha tantos problemas.

CIDADÃO: Fernandópolis é uma cidade que tem fama de ter um grande trabalho no campo da assistência social – muita gente considera que essa é a nossa maior virtude. Apesar de sermos uma região pobre, as pessoas sempre colaboram. O que você acha disso?
VAL: É verdade. O povo de Fernandópolis é muito generoso. O comércio e a indústria sempre “espremem” para conseguir dar alguma ajuda. O engraçado é que não é difícil trabalhar com caridade em Fernandópolis. O difícil é fazer alguma coisa politicamente; com a sociedade, a gente fica impressionada. Às vezes, você sabe que a pessoa está em dificuldades em seu negócio, mas ela faz questão de dar alguma coisinha, ainda que pequena. São muitas entidades – nós temos que fazer eventos para dar conta das despesas – mas a cidade inteira contribui. Acho que foi essa generosidade que me fez ficar aqui. Eu tinha um sonho de participar ativamente da construção do nosso sindicato, de participar de uma organização social madura, que não dependesse do poder público. Mas esse trabalho “grudou” em mim.

CIDADÃO: Já que você trabalha com menores, não dá para fugir da pergunta: como você avalia o trabalho que vem sendo feito pelo juiz Evandro Pelarin à frente da Vara da Infância e Juventude de Fernandópolis?
VAL: Participei recentemente de um ato de desagravo ao Dr. Evandro. A proposta dele e de sua equipe – porque não é só ele, são os outros juizes, os promotores, o pessoal do Conselho Tutelar – é de resgatar valores indiscutíveis da sociedade. Essa postura que o judiciário está tomando dá força aos pais. Durante aquele ato que mencionei, uma mãe pediu a palavra e disse ao Dr. Evandro: “Olha, doutor, por ter tido filhos já numa idade mais avançada, eu achava que estava ‘demodeé’, que meus valores já não eram os adequados. Estava perdida na educação de meus filhos. Quando o sr. veio para cá, isso resgatou em mim a coragem de dizer que os meus valores é que são corretos”. Além disso, há os casos concretos que foram resolvidos, como a do alcoolismo de meninos de 11, 12 anos, pelas ruas da cidade. E havia situações de negligência extrema dos pais, que não vigiavam seus filhos. Esses pais nem sabiam onde os filhos estavam, altas horas da noite. Foi uma sacudidela nesses pais, que precisaram de um juiz para lhes abrir os olhos. Veja, eu trabalho com inclusão social e sei que isso é maravilhoso – tirar uma criança da rua, de uma vida perniciosa, e fazer dela uma criança feliz, com esperança e com objetivos na vida. Transformar essas crianças em seres que se respeitam e que são respeitados é maravilhoso. A gente cresce muito, ao fazer as crianças entenderem o que é o respeito. É uma bênção.

CIDADÃO: Amanhã é o Dia das Mães. Você, que não foi mãe biológica, como encara esse dia?
VAL: Eu quero mesmo é que todos os dias sejam Dia das Mães. Sou apaixonada pelas mães. Fiz uma opção de não ter filhos, porque na realidade eu nunca sonhei com essa condição. Pra falar a verdade, eu sonhava ser tia (risos). Os grandes dias da minha vida foram os dias em que nasceram meus sobrinhos. Eu me sinto um pouco mãe – talvez mais tia – de todas essas crianças que passaram pelo meu projeto e estiveram sob minha guarda. Cada criança em que você vê um problema, e tenta solucionar, o torna participante da vida dela, presente na sua realidade. Muitos não têm nem família. Há casos de pai preso, mãe presa e até avó presa. Acima de tudo, eu sou filha de Deus, então minha visão é de responsabilidade. Se Deus coloca uma criança nas minhas mãos, não é por acaso. Se eu tiver que dar mais de mim, eu darei, o quanto ela necessitar. A gente tem que dar carinho, indicar os caminhos, explicar como será o futuro. Temos casos difíceis, de crianças que são verdadeiros estranhos no ninho. Deus nos dá a paciência necessária para trabalhar esses casos. Teve um jovem que entrou muito tarde na adolescência, e eu lhe expliquei com jeito que era um problema de hormônios, etc e tal. Ele me disse que sua mãe nunca lhe explicou isso. Eu respondi: “Não a culpe por isso, porque ela não sabe também”. Então, nós fazemos a criança entender e amar seus pais dentro dos limites do que eles podem fazer e dar. A enxergar o limite do outro, enfim. Eu sempre tive oportunidade de estudar, até hoje estudo. Mas e os pais dessa criança? Eles não tiveram sequer direito à infância.

CIDADÃO: Quantas crianças estão no Henry Pestalozzi?
VAL: Cerca de 100. O número varia porque as pessoas se mudam, mas é essa a média. Lá na instituição, eles encontram paz, orientação e alimento. E muitas mães aparecem por lá, já que também é preciso trabalhar os pais.

CIDADÃO: Fazer esse trabalho social junto com o marido significa o quê na relação de vocês?
VAL: É excelente porque são objetivos comuns, meus e dele. Além do amor e carinho entre marido e mulher, somos parceiros num projeto maior, que fortalece muito a relação. Quando chega a noite, temos muito que conversar, o que facilita a convivência. Afinal, há um ideal, um objetivo comum.