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“Capelão não é título, é uma vocação”



“Capelão não é título, é uma vocação”

Em meio a tragédia da pandemia do coronavírus, o coach e reverendo Júlio Cesar da Silva, de Fernandópolis, capelão há 16 anos, está prestando assistênciab espiritual voluntária aos profissionais de saúde que estão na linha de frente da Covid-19 e famílias, vítimas da pandemia. Ele é formado Capelão e é membro da capelania United Chaplains International – Religious Organization – de Nova York. Júlio Cesar atuou em grandes desastres como o 11 de Setembro em Nova York e o furacão Vilma na Flórida. “Tenho muito orgulho de ser capelão. Capelão não é título, é uma vocação. 
A capelania, tanto militar, quanto hospitalar, esteve presente em todas as guerras e nos piores momentos da humanidade”, relata. 
“A função do Capelão é auxiliar no encontro da paz e harmonia, confiança e solidariedade, bem como o significado mais profundo da existência humana. Dessa forma, a capelania deve ajudar a reestruturar aquilo que se encontra desestruturado. A capelania busca prover a assistência espiritual voluntária aos que assim desejarem: enfermos hospitalizados, seus familiares e profissionais da saúde”, explica.

Ele também escreveu artigo para esta edição com o título “Lauréis aos Profissionais da Saúde” em homenagem aos profissionais de saúde. Nesta entrevista ao CIDADÃO, Júlio Cesar fala da guerra contra o coronavírus e do trabalho de apoio aos profissionais de saúde que estão esgotados e que  ele reconhece como “heróis”. Leia:
O que o levou a buscar essa formação de capelão?
É preciso falar um pouco da história da capelania. A gente fica até um pouco assustado das pessoas não conhecerem muito esse trabalho na nossa região, mas a capelania é um trabalho assíduo, todas as Forças Armadas, os grandes hospitais, têm o trabalho de capelão. A capelania também é amparado em lei. Se pegar na constituição, tem a lei 9.982 de 14 de julho de 2000 que fala sobre a assistência religiosa em entidades hospitalar e pública. O cidadão tem direito a essa assistência e pouca gente sabe disso. Por exemplo, uma vez solicitado a presença de um capelão, está amparado por lei a pessoa ser acolhida neste momento que precisa. É claro que o capelão faz esse trabalho em comum acordo com o hospital. Na Santa Casa de Fernandópolis, está em andamento um pedido, já enviei os documentos, para atender a capelania como voluntário. Isso nasceu em mim, está na minha personalidade, de ajudar as pessoas, cuidar das pessoas, de ser uma pessoa que ama gente, que trabalha com a gestão de pessoas. É trabalho assistencial, de levar um conforto espiritual, indiferente da religião da pessoa. 
A função de capelão se encaixa bem em um país laico como o nosso?
Exatamente, a capelania tem que ser laica. O capelão pode ser católico, evangélico, espírita, mas quando está atuando, o trabalho dele é laico. Ele não faz um trabalho de proselitismo religioso, ele atende a todas as pessoas. Esses dias que atendi na UPA, por exemplo, a gente se aproxima da pessoa, se identifica como capelão e pergunta se ela aceita uma oração e até hoje ninguém disse não. A gente ora pela pessoa, dá uma palavra bíblica, independente da fé. O capelão atua também em caso de luto. No sábado (dia 20) fui até a UPA, teve três óbitos, quando os familiares chegaram eu acompanhei, orei com eles, transmiti uma palavra de consolo. Atendi todas as famílias que estavam em luto naquele momento.

"Nós estamos numa guerra e toda guerra deixa sequelas. Essa não é diferente"

O trabalho que tem desenvolvido junto a profissionais da Saúde, é como coach ou capelão?
Como os dois. Eu estou lotado na Saúde do Município há mais de um ano como diretor de treinamento. Passei a pandemia dando treinamento. O trabalho que realizo com eles é voltado para a humanização do atendimento das pessoas, a melhora do relacionamento entre equipe. É um treinamento profissional que faço e que tem ótimos resultados. Já o trabalho da capelania é voluntário. 
No contato com o pessoal da área da saúde em geral, qual o sentimento que está colhendo de quem está na linha de frente?
Estou no meio deles. Está todo mundo esgotado, cansado, sobrecarregado. A equipe está muito triste, esgotada psicologicamente, ao mesmo tempo frustrada com a população que não atende as recomendações, não consegue entender a dimensão do que está acontecendo. Até falo, que se as pessoas pudessem dar uma volta lá dentro (na UPA), entenderiam e pensariam duas vezes em se expor e expor alguém. 
Sobrarão sequelas psicológicas no pós-pandemia?
Nós estamos numa guerra. Sou capelão, passei por algumas crises, grandes desastres. Quando aconteceu o ataque em 11 de setembro em Nova York, nos Estados Unidos, eu já era capelão. Toda guerra deixa sequelas. Essa não é diferente. Hoje a gente vive a maior crise sanitária da história. É impossível não deixar sequelas para esses profissionais da saúde. A prefeitura até abriu uma linha para esses profissionais buscarem ajuda, apoio, inclusive é meu número que está lá. Quando um profissional da saúde precisa de ajuda, me liga e eu faço uma triagem para ver, com minha experiência, se encaminho para o psicólogo o para o psiquiatra. Tem uma equipe de psicólogos pronta para atender. O prefeito se preocupou com isso e tem uma mensagem interna informando que eles não estão sozinhos. Eles podem pedir ajuda.
O seu trabalho é mais de apoio espiritual?
É totalmente espiritual. A missão da capelania é espiritual, tem até um termo que diz que ela é um aconselhamento psíquico bíblico, ou seja, você dá um apoio psicológico baseado na Bíblia, na fé. 

"A missão da capelania é espiritual, ela é um aconselhamento psíquico bíblico"

Nos grandes desastres em que esteve, o que viu e sentiu e que pode ser aplicado agora em meio nessa grande crise que estamos vivendo?
Eu me sinto hoje como um veterano de guerras, de grandes crises, como o ataque à Nova York. Eu estava lá naquele 11 de setembro, sou testemunha ocular, até escrevi um artigo para a Folha de São Paulo, na época, onde dizia que se Nova York fosse uma boca ela teria perdido os dois dentes da frente. A cidade ficou irreconhecível, agredida, a tristeza era muito grande, o espanto, o medo. A capelania esteve lá. A mesma coisa nós fizemos no furacão Vilma que devastou a Flórida. A equipe desceu para ajudar as pessoas. Os países desenvolvidos trabalham muito forte a capelania. Essa capelania que fizemos é reconhecida por uma universidade nos Estados Unidos, tem reconhecimento universitário. 
Aqui no Brasil, esse trabalho não é tão propagado como nos Estados Unidos?
A capelania é muito forte aqui dentro das Forças Armadas. O capelão nas Forças Armadas é um oficial. Pouco antes de ir para os Estados Unidos em 1998, eu poderia escolher ser capelão da Marinha, que já entra como oficial, tenente, hoje seria um Almirante. Se não tivesse ido para os Estados Unidos seria capelão da Marinha. Nas Forças Armadas é comum ter o capelão, ele é um oficial reconhecido e respeitado. 
Esse contato com o Capelão, funcionaria como uma válvula de escape para os profissionais da saúde em meio a toda pressão da pandemia?
Eu entendo que estamos no calor da batalha. Nesse momento, a nossa equipe, tanto da Saúde, quanto outros profissionais como a Polícia, vão precisar de apoio psicológico, espiritual. A espiritualidade está no homem, não é uma coisa moderna, contemporânea. Ela é antropológica. Todo o ser humano tem a parte espiritual dele. Se você vai até uma tribo indígena, em lugar remoto, isolado, verá que eles têm um culto, tem adoração. O ser humano precisa ser cuidado nesta área. A fé é muito importante em toda a situação, principalmente em tragédias como estamos vivendo. A fé é um diferencial.

"A pandemia apertou as pessoas e o que estava no âmago veio à tona"

Qual a maior fragilidade que ser humano está revelando nesse momento?
A pandemia apertou as pessoas e o que estava no âmago veio à tona. O egoísta ficou mais egoísta, o avarento ficou mais avarento. Você lembra das pessoas comprando todo o álcool em gel que tinha, todo o papel higiênico que tinha? Parecia que a pandemia iria dar diarreia em todo mundo. A pandemia reverberou aquilo que estava dentro das pessoas, trouxe à tona aquilo que estava lá dentro. Então, quem é solidário, que se preocupa com o próximo, ele está se colocando à disposição. O momento agora é de união, coisa que a gente não vê em nosso país, não conseguimos ter uma nação unida em nenhum momento. Sempre nos momentos difíceis a gente vê pessoas buscando seu próprio interesse. 
Para aqueles que passaram pela dor de perder um ente querido na pandemia sem poder realizar um velório, o que poderia ser dito?
Primeiro que o luto é um processo que continua, O que aconselho as pessoas é ficarem firmes, esperar passar tudo isso, não tem como homenagear as pessoas agora. Quando o soldado não volta da guerra, se coloca uma foto bem bonita dele, reúne os amigos, onde todos falam da pessoa e prestam a homenagem. A minha sugestão é que, quando tudo isso passar, a gente possa homenagear essas pessoas, até porque é importante que o processo do luto tenha um começo, meio e fim. Talvez o fato da pessoa não acompanhar o velório, não chorar, não ver o sepultamento, aquilo deixa um sentimento de que o luto não foi completo. Vamos deixar passar para homenagear a memória dessas pessoas que foram recolhidas durante a pandemia.
E para aqueles que estão nessa guerra contra o vírus?
Tenho sempre falado nas minhas palestras, ou individualmente, estamos vivendo um momento sem precedentes na nossa história. No momento não temos como dimensionar, mas quando passar perceberemos que temos uma grande história para contar. Vamos sobreviver, continuar lutando, enfrentando a situação sem desanimar. Vamos renovar nossas forças e saber que vamos passar por isso e sair melhor como ser humano.

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