Observatório

“É angustiante”, diz médico sobre a rotina na UTI da Covid



“É angustiante”, diz médico sobre a rotina na UTI da Covid

O médico Fernando Bertucci, 61 anos, já está calejado pelo tempo de estrada na medicina. São 35 anos que dão a ele experiência suficiente para não se abalar emocionalmente em meio ao caos da pandemia. No entanto, desde o ano passado como diretor Técnico da Santa Casa e coordenador na Unidade de Terapia Intensiva ele passou a enfrentar uma dura rotina de uma doença que não dá tréguas e que já tirou a vida de quase 200 fernandopolenses. “Teve um momento da pandemia que a gente pensava que ela estava acabando, mas vieram as variantes, mais agressivas e mudou tudo”, relatou o médico nesta entrevista ao CIDADÃO.
Fernando Bertucci diz que não tem medo de morrer. “Mas, não quero morrer de bobeira. Por isso, não me considero vacinado (ele já tomou as duas doses), sempre tomo os cuidados, ando de máscara, uso álcool em gel, lavo as mãos, distanciamento o tempo todo”, relata. Usa os hobbys, que diz, ajudam “distrair a cabeça”.
A entrevista é um relato de uma dura realidade para aqueles que chegam a UTI da Covid na Santa Casa. Mas, é também um alerta para aqueles que acham que não estão no perfil da doença.
“Hoje não tem mais perfil. Todos são de risco. Não podemos relaxar nos cuidados. A gente não sabe quando será a próxima onda”, alerta. Leia a entrevista:

Como o senhor define a realidade da UTI antes e depois da pandemia?
Todos achavam que a doença estava indo embora no final do ano passado, mas ela voltou e voltou forte. Até então, a gente tinha leitos de UTI suficiente para atender na pandemia. Hoje não é mais a realidade, não temos mais leitos, houve uma sobrecarga nas UTIs. O paciente que entra na UTI com essa doença não sai em uma semana, dez dias. Ele fica um mês, 45 dias, as vezes, dois meses na UTI. Um paciente que entrou no começo de março está até hoje na UTI. Antes não, era diferente. Um paciente infartado, por exemplo, fica três, quatro dias na UTI, uma pneumonia, uma semana, dez dias, um AVC também de três a sete dias. Agora, a Covid não é assim. O paciente entra e se você intubou, com menos de 15, 20 dias você não estuba esse paciente, nem ele evoluindo muito bem. É raro a gente estubar um paciente sem ter que fazer uma traqueostomia e, normalmente, a gente faz isso entre sete e dez dias de intubação. A grande maioria desses pacientes ficam um mês na UTI. Por isso que houve essa sobrecarga. Um não dá vaga para outro. Então mudou muito o perfil da UTI por conta disso.

"Depois dessas novas variantes que surgiram, acabou o perfil. Todo mundo é de risco"

O senhor, com 35 anos de experiência na medicina, jamais imaginou passar por uma situação como essa?
Não, de jeito nenhum. Daqui para frente só pensava em água, sombra e alegria. Não pensava que iria viver isso. Particularmente tinha plano de reduzir minha carga horária, na verdade, hoje dedico o tempo todo, cedo, tarde, noite e madrugada trabalhando por conta da Covid-19. Achei que, quanto mais velho ficasse, menos iria trabalhar. Mas, ocorreu o contrário. Estou trabalhando mais do que trabalhava quando tinha 20 anos.
Como o senhor trabalha a questão mental para enfrentar a pandemia?
Já estamos calejados, com muita experiência de vida e na medicina, mas não é fácil. Você perder paciente de 22 anos, 25 anos, assim, do nada, o cara, uma semana atrás estava bom e de repente está na sua frente precisando de toda a ajuda do mundo e você não consegue ajudar, porque o respirador não dá conta, o pulmão fechou tanto que não tem jeito. É angustiante. Mas, mentalmente eu procuro através de alguns hobbys e quando posso, fazer alguma coisa para distrair a cabeça. Final de semana, quando posso, a primeira coisa é dormir, descansar. Umas das coisas que tenho em mente é o seguinte: não adianta ter tomado duas vacinas. Se a minha imunidade não estiver boa eu vou pegar essa doença de novo, assim como está ocorrendo com muita gente que mesmo vacinado está pegando a Covid. Então, a primeira coisa, é que não me considero vacinado, sempre tomo os cuidados, ando de máscara, uso álcool em gel, lavo as mãos, distanciamento o tempo todo. E uma coisa importante é o repouso. Quando posso, eu descanso, descanso bastante, as vezes passo um domingo inteiro dormindo, porque a semana foi pesada e a gente não pode abusar. Quem defende nosso organismo é o nosso organismo, não é o remédio. O remédio ajuda, só que não faz tudo sozinho, a gente tem que dar condições para o remédio agir e uma das condições é essa, a imunidade do organismo estar em dia. E isso vale para todos.
O momento mais crítico é o da intubação do paciente. Nesse momento, qual a reação do paciente?
Muitos deles chegam a pedir pela intubação. Já aconteceu isso comigo, do paciente chegar e pedir que hora ia intubá-lo porque ele não aguentava mais ficar com falta de ar. A falta de ar é tão grande que ele se cansa, é como fazer um exercício físico e exceder na carga, querer respirar e não conseguir puxar o fôlego. Chega uma hora que a pessoa pede para você intubar. Normalmente, todos aceitam bem, mas tem várias reações. Não faz muito tempo, uma senhora que fui intubar começou lembrar dos netos, contar sua história e depois começou me agradecer, dizendo que tinha certeza que estávamos fazendo o melhor por ela que já não aguentava mais. A grande maioria aceita, não reluta. Alguns ficam com medo, mas entendem a situação.
Nesse período de pouco mais de um ano de pandemia, o senhor notou mudança de perfil de pacientes na UTI da Covid?
Muito. No começo da pandemia, eram pacientes mais idosos. A grande maioria era de idosos com 60, 70, 80, 90 anos. De uns seis meses prá cá, um pouco menos até, começou a mudar o perfil do paciente. Começou a chegar gente mais nova sem comorbidades. No começo eram idosos com comorbidades (diabetes, hipertensão, etc). Hoje, não existe idade, não existe comorbidade. Eu tenho paciente com 18 anos intubado, paciente com 25 anos, com 40. A obesidade é uma das coisas que a gente nota que está influenciando muito. Depois dessas variantes que surgiram, acabou o perfil. Todo mundo é de risco.

"Não dá para relaxar. Acho que é como estar no meio de uma guerra, esperando o próximo ataque"

Até mesmo a evolução da doença mudou?
Sim, tudo por conta das variantes. Há algum tempo a gente chegou a pensar que a doença iria acabar. Chegou um dia que comentei com o Dr. Baraldi (Luis Baraldi) que era bem provável que a gente iria fechar a Unidade da Covid na Santa Casa, porque tínhamos dois pacientes internados na unidade inteira, isso no final do ano passado. Parecia que a pandemia tinha acabado. De repente, explodiu com essas variantes de Manaus, da Inglaterra, e tornou a doença mais agressiva. O vírus é muito mais agressivo e mais rápido no contágio, mais virulento. Mudou bastante.
Qual o cenário que o senhor vislumbra para o futuro?
Nós, nunca mais vamos viver no normal, como a gente vivia antes. Sempre teremos que ter cuidados. Vai ser difícil abandonar o uso de máscaras. Não sei se com a vacinação, vai ocorrer uma redução de casos tão grande assim. Vejo isso pela própria H1N1 (gripe suína) que todo ano temos casos. Esse ano ainda não tivemos casos, porque está todo mundo usando máscaras e o H1N1 é muito mais manso, vamos dizer assim, na comparação com a Covid, cuja transmissão é muito mais rápida. Usando máscaras, a gente não vai ter uma vida tão conturbada como hoje, mas viver normalmente como a gente vivia antes, vai ser um tanto difícil. O vírus vai diminuir, mas não acabará.
Como define esse período que o senhor está vivendo hoje como médico uteista?
Como disse, nunca pensei viver uma situação dessas. Mas, vamos entrar para história, assim como na época da gripe espanhola (1918-1920), de uma pandemia que matou muita gente. Acho que vai ficar um ensinamento muito grande pra nós, porque tivemos que aprender tudo muito rápido. De um ano e meio prá cá tivemos que aprender a lidar com uma coisa que a gente nunca imaginava. E uma coisa difícil, que muda, estava acabando e voltou, parece que começa dar sinais de melhora, porém, a gente fica esperando quando será a próxima onda. Não dá para relaxar. Acho que é como estar no meio de uma guerra, esperando o próximo ataque. Todo dia, quando chego em casa, agradeço a Deus por estar vivo. Ao levantar todo dia, faço oração pedindo que Deus me proteja naquele dia. Sabemos que a morte é uma coisa certa, mas a gente saia de casa e não tinha essa preocupação de que poderia morrer logo. Hoje não dá para saber se daqui um mês estaremos vivos, por causa da Covid. Perdemos muitos amigos, jovens, saudáveis, de uma hora para outra.
Recentemente chegou esse capacete Elmo para ajudar no tratamento de pacientes. Já estão usando esse capacete?
Sim, já usamos. O capacete é uma fase do tratamento. Quando chegou todo mundo achou que iria substituir a intubação, mas, não é isso. Antes, a gente tinha um período da doença que o paciente agravava e depois começava a melhorar, do oitavo ao décimo quarto dia. O Elmo serve para esse momento da piora do quadro. Você coloca o capacete para ver se não vai precisar intubar. E isso vai depender da evolução da doença. A gente usava uma máscara sob pressão e o Elmo é mais confortável para o paciente. A máscara incomodava muito a pessoa, sufocava. O Elmo é menos assustador, mas ele dá uma pressão maior para manter o pulmão aberto. O capacete veio para dar mais conforto aos pacientes.

"Pegar essa doença é como uma loteria. Pode ser uma gripezinha, como pode ser o caixão"

O senhor teme faltar o kit intubação?
Não chegamos a isso, mas para ser sincero estamos com dificuldade para comprar esses medicamentos, além dos preços absurdos. Uma ampola que custava 20 reais, na semana passada compramos por 242. Sempre que possível a gente está comprando porque sabemos que não pode faltar. Se faltar, não tem como sedar o paciente. Por enquanto, Graças a Deus, aqui não tivemos isso, mas estamos procurando métodos alternativos. Eu tenho alguns pacientes na enfermaria da Covid que estão com medicações adjuvantes, mas não consegui parar de usar o kit intubação (ou kit sedação) totalmente. Os adjuvantes que usamos são para potencializar um pouco o efeito da sedação para que se use menos o kit intubação. Mas, sem o kit intubação não tem como sedar o paciente. Uma coisa que difere o paciente da UTI normal da UTI Covid, é a quantidade de medicamentos que precisamos usar na sedação. O uso de medicamentos nos pacientes com Covid é mais que o dobro, talvez o triplo do que é usado para um paciente com outras doenças. Sem contar que, se não usar o bloqueador neuromuscular, coisa que nem usava antes, eu não consigo ventilar esse paciente.
O que senhor diria para quem está lendo essa entrevista?
É repetitivo, mas é preciso dizer. Use máscara, distanciamento, lave as mãos. Não se reúna desnecessariamente. Precisamos tomar os cuidados mais simples, que é que estão mantendo as pessoas vivas. Ainda estamos na pandemia e creio, que dificilmente, vamos poder voltar a andar sem máscara. Não que eu tenha medo de morrer. Morrer todo mundo vai, mas não quero morrer de bobeira e se você pegar essa doença é como uma loteria. Ela não tem critério. Hoje estamos vendo famílias inteiras contaminadas e morrendo. Foram as reuniões de famílias que pareciam inofensivas. Não podemos abusar, temos que tomar os cuidados. Quem está vacinado ainda precisa se precaver e quem ainda não é vacinado, mais ainda, porque se pegar a doença ninguém sabe como ela vai evoluir. Pode ser uma gripezinha, como pode ser o caixão. Vamos redobrar os cuidados.

Observatório