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Hora de repensar o “outro” e o “si mesmo”



Hora de repensar o “outro” e o “si mesmo”

Estamos completando seis meses de quarentena imposta pela pandemia do coronavírus que afetou a de rotina de todos. Os estudantes deixaram de frequentar escolas, os jovens impedidos de baladas e pais que perderam trabalho e renda, formam um cenário de abalos emocionais. Para a psicóloga e psicanalista Edilaine Sanches Sano, o momento que vivemos é uma oportunidade única para se repensar o “outro” e o “si mesmo”.

Nesta entrevista, Edilaine faz um alerta aos pais que estão com os filhos em casa, longe da escola, por conta da pandemia.

“A falta do convívio profícuo dentro de casa, faz com que, para muitas crianças, a escola represente o lugar exclusivo de convívio social”. Ela também aborda sobre o “Setembro Amarelo” de prevenção ao suicídio e do trabalho desenvolvido pelo SEAPSI – Serviço de Acolhimento Psicológico – em parceria com a Igreja Católica, que reúne um grupo de psicólogos e médicos. Um trabalho voluntário que tem sido cada vez mais procurado. Leia a entrevista:

Nunca se falou tanto em saúde mental como agora em meio a pandemia do coronavírus. Esse momento tem sido desafiador?

Acredito que, neste momento, a saúde emocional está reconstruindo universos entre as pessoas, uma oportunidade única para se repensar o “outro” e o “si mesmo”. Particularmente, penso que, desde que nascemos, já estamos sendo desafiados e somos impelidos a resistir firmemente para poder existir. Olhando para o cenário atual, onde temos a sensação de que o mundo foi parando aos poucos, começando pela Ásia, caminhando pela Europa até chegar ao Ocidente, estamos todos vivendo um acontecimento que impõe uma descontinuidade nas pequenas e nas grandes questões da vida, tirando-nos de um ritmo muito acelerado para nos dar a possibilidade de experimentar o “ficar em casa”.  Como toda mudança, a princípio, causa muito estranhamento, a pandemia impôs à humanidade, a necessidade de não olhar somente para o que está fora, dando a possibilidade de restabelecer o olhar para dentro de nós mesmos. Um tempo que faz questão de passar mais lentamente, tempo para descansar, ouvir música, cozinhar, trabalhar em casa, cuidar do jardim, estar com a família, enfim, escolher a nutrição do corpo e da alma. Por outro lado, não podemos nos esquecer daqueles em que a pandemia contribuiu agravando desequilíbrios que já vinham vivenciando, sendo esses de causas emocionais e ou financeiras. Para estas pessoas, realmente este momento está sendo muito desafiador, principalmente com a perda de renda que, consequentemente, interfere diretamente no direito ao acesso às necessidades básicas e dignas para viver.

"A experiência da quarentena interroga os modos que estávamos organizando e sustentando nossos projetos profissionais, pessoais e familiares"

As crianças e jovens, afastados das escolas, dos grupos de amigos, são mais vulneráveis a quadros de ansiedade, síndrome do pânico, depressão e estresse neste período?

Penso que a experiência da quarentena interroga os modos que estávamos organizando e sustentando nossos projetos profissionais, pessoais e familiares. O vírus da indiferença, competição e individualismo há muito vem se manifestando nas relações, e os impactos da pandemia revelam para as crianças que os adultos estão sendo confrontados com suas próprias incertezas e não saberes. Os pais, muitas vezes por não saberem estar com seus filhos, preferem oferecer-lhes algo material para compensar suas faltas e agem como se eles tivessem nascido adultos, deixando à mostra o quanto perderam contato com a própria infância e adolescência. A falta do convívio profícuo dentro de casa, faz com que, para muitas crianças, a escola represente o lugar exclusivo de convívio social. A reclusão dentro de casa e o afastamento de amigos e educadores podem impactar direta e negativamente na vida das crianças evidenciando o desamparo, a falta de afeto, tensões e conflitos familiares, vilões dos quadros de ansiedade, agressividade e depressão infantil. Por outro lado, com a escola acontecendo dentro das casas, é possível para os pais, observar a grande responsabilidade que delegam aos professores de educar e formar as crianças hoje e, inclusive, acompanhar o desenvolvimento dos filhos, uma vez que todas as experiências que acontecem na infância serão representações estruturantes para a vida toda. Com os jovens, percebe-se que, neste período em que estão afastados dos amigos, a busca é ainda maior pelo mundo virtual, podendo contribuir para uma desadaptação ao mundo. O conhecimento, por meio do computador, pode oferecer ao jovem uma exploração superficial, desadaptada ao próprio corpo, ao social e com uma comunicação condicionada a uma tela como anteparo, deixando-o mais isolado e hipnotizado por estar mais conectado ao mundo virtual do que ao real. A insegurança, ansiedade e o medo da escolha são cada vez mais frequentes em seus discursos. É imprescindível uma vivência compartilhada com os filhos, para que se produza laços permeados por um saber fazer, construído por meio desta relação. Penso que a angústia, que inunda pais e educadores nesses tempos de mídias sociais em excesso, deve-se às crianças e jovens estarem sendo pouco preparados para enfrentar a “vida lá fora”, tendo pouco acesso ao real e, alienadas, ficarão desadaptadas para a vida.

Quais os sinais mais evidentes que exigem atenção dos pais? Como os pais devem agir?

Acredito que a principal atenção dos pais deve ser com os excessos, porém, para percebê-los, a família precisa ter clareza dos limites. Nascemos em uma sociedade onde vivemos a grupalidade, fazemos escolhas a todo momento e estas implicam em ganhos e perdas, consequentemente, precisamos assumir a responsabilidade do que escolhemos. Definir como os filhos serão educados, quais e como os valores morais serão transmitidos no contexto familiar é responsabilidade dos pais e/ou cuidadores, que nem sempre foram pensados e vivenciados em suas famílias de origem. Tendo em vista os smartphones, computadores e videogames também serem na atualidade responsáveis em deixar crianças e adolescentes isolados e hipnotizados, a recomendação dos “especialistas” seria de limitar o uso desses dispositivos eletrônicos. Pela minha experiência, enquanto mãe e psicóloga infantil, a árdua tarefa em impor limites aos filhos é muito complexa. As inovações tecnológicas sempre foram recebidas com um misto de fascínio e horror. Fascínio pela facilidade, perfeição e esperança de tornar a vida melhor no futuro, horror, pelo grau de imprevisibilidade que contém, podendo produzir transformações que regulariam nossos costumes de maneira a nos escravizar. Conciliar estes dois extremos é uma tarefa que exige muito equilíbrio dos pais. Os pais pedem receitas de como agir com os filhos a todo o momento. Como as famílias são únicas, é preciso que nossa avaliação seja exclusiva, subjetiva e qualificadora. A pandemia trouxe uma grande oportunidade de os pais perceberem a importância do brincar, conversar, contar histórias e, principalmente, a constituição da história dos pais e deles, naquela família. Este momento também é oportuno para os pais analisarem se a escola escolhida se identifica com a educação que eles planejaram para seus filhos ou se a criança está em sofrimento tentando acompanhar a escola idealizada. Neste contexto a psicoterapia infantil tem colaborado muito com as famílias, uma vez que, quando o diagnóstico é precoce, as chances de minimizar traumas e melhoras no desenvolvimento emocional, intelectual e social é consideravelmente maior.

"Com os jovens, percebe-se que, neste período em que estão afastados dos amigos, a busca é ainda maior pelo mundo virtual"

Em Fernandópolis, temos o SEAPSI – Serviço de Acolhimento Psicológico – em parceria com a Igreja Católica, que reúne um grupo de psicólogos e médicos. Esse serviço registrou aumento de procura no pós-pandemia? Quem tem procurado mais por este atendimento?

Desde março de 2018, quando o SEAPSI iniciou os atendimentos à comunidade, a demanda vem crescendo consideravelmente. Em 2019 tivemos um crescimento de 75% nos pedidos de atendimento em relação a 2018 e também um aumento nas solicitações de ingresso de profissionais para prestarem o serviço de atendimento psicoterápico. Neste ano, devido à pandemia, os atendimentos iniciaram-se com muita procura, porém, diminuíram devido à interrupção do atendimento presencial durante o período de isolamento social. A demanda da psicoterapia iniciou-se maior para pacientes adultos e atualmente é bastante procurada para atendimento infantil, adolescente e de casal.

Como é feito esse atendimento em meio à quarentena?

A partir do início da pandemia, todos os atendimentos psicoterapêuticos passaram a ser feitos online. Com o apoio e orientações do Conselho Regional de Psicologia, os profissionais foram se adaptando e se capacitando para os atendimentos virtuais. Com a flexibilização, aos poucos os profissionais foram retomando os atendimentos presenciais aos pacientes que não fazem parte do grupo de risco.

Há casos de encaminhamento para atendimento médico psiquiátrico?

O SEAPSI desde o início de sua implantação conta com a colaboração e orientação de médicos psiquiatras. Quando o psicólogo identifica junto ao paciente risco iminente, ele é orientado pelas psiquiatras colaboradoras de como deve conduzir o encaminhamento daquele paciente. Em casos mais urgentes, as próprias psiquiatras já atenderam diversos pacientes, em casos menos urgentes, busca-se o atendimento médico na rede pública de saúde. É importante lembrar e agradecer aos profissionais da saúde mental, o grande apoio que nos oferecem, indicando o atendimento psicoterápico aos seus pacientes.

Como foi à criação desse serviço de acolhimento? Como as pessoas têm acesso?

O SEAPSI nasceu da ideia de viabilizar acesso ao atendimento especializado psicoterápico a toda população, através de um trabalho com características de voluntariado. Foi planejado juntamente com a Pastoral Familiar da Paróquia Sta Rita de Cássia de Fernandópolis a fim de colaborar com a demanda dos padres e leigos, passando a ser atendido por profissionais e não somente como acolhimento espiritual como era realizado. Com todo o apoio dos Padres da Paróquia Santa Rita, o SEAPSI desde sua implantação, recebe as inscrições das pessoas ou responsáveis (quando menores) interessados no atendimento psicoterápico na Secretaria Paroquial, sem qualquer restrição, inclusive de crenças. Estas inscrições são repassadas aos supervisores que, por sua vez, encaminham aos psicólogos responsáveis pelos atendimentos.

Por causa da Covid-19, o Setembro Amarelo de alerta para prevenção do suicídio ganhou ainda maior importância?

Em 2019, a partir do mês de setembro, percebeu-se um considerável aumento nas solicitações de atendimentos de urgência a pacientes com risco de suicídio encaminhados pelos psiquiatras. Acredito que isto se deve ao empenho das campanhas preventivas que se intensificam no mês de setembro. Vários de nossos profissionais fizeram palestras e encontros em escolas, igrejas e faculdades. Neste ano, quando estamos vivendo um momento atípico, acredito que esta análise ainda está sendo realizada. Contudo, a intenção do setembro amarelo, além de trazer mais visibilidade à causa, é incentivar a população a procurar ajuda. Particularmente, entendo que o suicídio está relacionado a uma complexidade emocional, uma dificuldade em aceitar limitações, ocasionando negação da realidade como forma de lidar com a culpa e com os traumas, consequência de uma sociedade que vem há muito tempo desesperançada e traumatizada. Existem muitas barreiras para se falar abertamente sobre suicídio. As pessoas não compartilham o desejo de tirar a própria vida ou a existência de pensamentos suicidas, porque não compreendem inteiramente o que estão sentindo “Quando alguém pensa em suicídio quer matar a dor, e não a vida”. O isolamento social é uma inesperada realidade que consequentemente aumenta os níveis de ansiedade, pois fatores desconhecidos e incertos fazem com que todos se sintam inseguros, mas também, podemos contar com a esperança de que neste tempo de pandemia, as famílias tenham ficado mais unidas e atentas aos sinais e sintomas que vão se mostrando no contexto familiar.

"A intenção setembro amarelo, além de trazer mais visibilidade à causa, incentiva a população a procurar ajuda"

Quando falamos em saúde mental, existe forma de prevenção? O que fazer?

A saúde emocional caracteriza-se como um bem-estar geral, diz respeito a uma análise dos fatores protetivos e de risco que podem afetar em menor ou maior grau a vida do sujeito. Pelo preconceito e julgamento, as pessoas não querem ser reconhecidas no lugar daqueles que têm transtornos mentais, com o risco de serem vistos como fracos ou descontrolados, algo que vai desde questões morais até as questões éticas. No caso de crianças então, a família se sente muito culpada e exposta. Descuidar da saúde mental pode abrir espaço para o agravamento do estado emocional, devido à interação da complexidade dos fatores de risco (genéticos, culturais e ambientais), podendo-se levar ao desenvolvimento dos transtornos mentais. A melhor forma de prevenção é estarmos atentos aos pedidos de ajuda, que não necessariamente se apresentam por meio da fala, mas também por meio de atitudes não verbalizadas que expressam a auto agressividade. Acredito no trabalho psicoterapêutico como forma preventiva e principalmente protetiva da saúde emocional. É preciso ter coragem para enfrentar nossas fragilidades, por isso, o acesso a esta sustentação psicológica está mais relacionado a uma aceitação interna do que a fatores externos.

Sua mensagem final!

Agradeço muito a oportunidade e valorização que este importante veículo de comunicação vem oferecendo à classe dos Psicólogos, em especial ao SEAPSI, em nome dos Padres da Paróquia Santa Rita de Cassia, dos dirigentes da Pastoral Familiar, Psiquiatras, dos Supervisores e de todos os Psicólogos que atendem e se dedicam ao Serviço de Acolhimento Psicológico, nossa sincera gratidão.

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