Escolas abertas, alunos em sala de aula após cerca de dois anos reclusos em casa por conta da pandemia. O que seria motivo de alívio, está gerando uma consequência que se espalha feito rastilho de pólvora. Início do mês, em Jales, um pai de aluno foi espancado por colegas de seu filho a poucos metros da escola, foi parar no hospital com traumatismo craniano e dois estudantes de 16 anos internados pela Justiça na Fundação Casa. Tudo por conta de ameaças de agressão contra o filho na escola.
Em Recife na semana passada, uma crise de ansiedade coletiva acometeu diversos alunos de uma escola. Em Jarinu, estudantes estavam se mutilando dentro da escola. O que está acontecendo com nossos alunos? A doutora em Ciências da Educação, Pedagoga, Psicopedagoga, Historiadora e Especialista em Bullying e Cyberbullying, a fernandopolense Cléo Fante, diz que nossas crianças e adolescentes estão sofrendo com as sequelas da pandemia. “É um sofrimento real, não é imaginário. Não é mimimi”.Nesta entrevista à Rádio Difusora FM e jornal CIDADÃO, Cléo faz uma abordagem do papel da escola e da família neste momento e deixou um alerta: crianças e adolescentes precisam ser escutados e não apenas ouvidas. Leia:
O isolamento social durante a pandemia agravou os problemas do bulliyng e ciberbullying entre os estudantes?
A pandemia trouxe um novo formato de educação desconhecido para crianças e adolescentes, principalmente nas escolas públicas, que foi o ensino remoto. Agora, com o retorno às aulas presenciais o que percebemos é que nossos alunos estão deslocados. A escola não se preparou para receber esses estudantes que, praticamente durante dois anos, ficaram em casa e enfrentaram uma série de problemas, desde a violência doméstica, abusos, até perda de entes queridos. Viram os pais perderam o trabalho e, lidar com tudo isso, gerou ansiedade e medo. Quando elas retornam à escola para conviver com a grande diversidade, eles perderam esse ‘time’ e a escola não se preparou para esse regresso. Quando dizemos não se preparou, não significa que não houve uma recepção para esses alunos, uma aproximação, mas foi algo pontual e é preciso uma ação mais duradoura. É necessário que se faça uma readaptação e que seja de forma continua, trabalhar a questão sócio emocional. Nossas crianças e adolescentes não estão sabendo lidar e gerenciar as emoções. Elas viveram no tumulto do dia a dia dentro de casa e retornam à escola com esses mesmos problemas. Não tem como trancar essa janela da memória e esquecer os problemas vivenciados em casa. Não, elas levam dentro da mochila os problemas do dia a dia que enfrentaram durante esse isolamento. É preciso pensar que há uma sequela muito grande. Nós que somos adultos, não estamos sabendo ainda lidar com os problemas decorrentes da pandemia. Todos, de uma forma ou de outra, com essa ansiedade latente, muitas vezes nos pegamos aflitos, sem motivos aparentes. Mas, são motivos inconscientes. Para se ter uma noção, o Brasil é o pais mais ansioso do mundo. Imaginem esse quadro de ansiedade para crianças e adolescentes. Se para o adulto começar um curso ou trabalho novo é difícil o período de adaptação, vamos pensar nessas crianças e adolescentes que estão voltando à escola e têm que se readaptar.
"Nossas crianças e adolescentes não estão sabendo lidar e gerenciar as emoções"
O cenário mostra que os estudantes estão retornando às aulas, além de ansiosos, mais agressivos. Isso tudo deve ser atribuído a esse período de reclusão?
Não podemos colocar uma única causa no aumento da violência, da agressividade entre os estudantes. É multicausal. Tem a questão da pandemia, mas tem a questão da família. Não vamos crucificar a família como muitas instituições fazem. A família nunca foi tão presente no sentido de satisfazer as necessidades materiais das crianças, até em excesso. A crianças vão criando pseudonecessidades e os pais vão suprindo. Mas, elas nunca estiveram tão abandonadas pela família, nunca se viu um momento da história em que as crianças fossem abandonadas de uma forma tão drástica como agora. A família está presente fisicamente, mas ausente emocionalmente. Não vamos generalizar, mas não se vê afeto. Falta suprir aquela lacuna que é o amor, a afetividade, a proximidade. Eles estão em seus quartos, aparentemente seguros dentro de casa, mas expostos a toda uma diversidade de violências pela internet, abusos, sendo alvos de cyberlullying e crimes virtuais. Vemos que também os pais estão presos a essa rede de computadores e estão esquecendo de dar o que há de melhor para os filhos que é o amor, estar junto, brincar. A gente sabe que a formação do cérebro, das memórias da criança ocorre de zero a seis anos. E é esse período que os pais devem dar maior atenção, maior afeto e maior exemplo para as crianças. Claro, que após seis anos é necessário também, mas a base, a constituição neural é nesse período. Corre-se muito atrás do ganhar, que é necessário, mas no momento que chegam em casa, cansados e sem paciência, estão abandonando as crianças. Aí elas vão as escolas e não é difícil encontrar crianças de seis ou menos idade com comportamentos agressivos, batendo nos coleguinhas, desrespeitosos com os professores e cuidadores. É necessário que a gente pare para pensar que a violência é multicausal e pensar na sociedade como um todo, porque a nossa sociedade está mais violenta. E a micro sociedade, família e escola, não é diferente da sociedade como um todo.
"Bulliyng não é mimimi, não é frescura. É algo que traz feridas emocionais"
Nessa volta dos estudantes às escolas, o foco deveria ser a recuperação do conteúdo escolar ou a saúde mental?
Ambas são necessárias. Se a gente prioriza só o pedagógico, esquece o emocional, esquece também que uma criança ansiosa não aprende, uma criança com déficit de atenção não aprende. Ansiedade gera o déficit de atenção, que gera a dificuldade de concentração, de aprendizagem, de rendimento e produtividade. Uma coisa vai puxando a outra. As duas coisas deveriam ser trabalhadas juntas. Se tivéssemos que escolher entre o pedagógico e o emocional, eu diria o emocional. Porque o pedagógico vem na consequência do emocional estabilizado. Quando há o equilíbrio emocional, quando a criança equilibrar essa ansiedade, ter uma sociabilidade melhor, gostar da escola, a aprendizagem vem como uma consequência. Tanto é importante o emocional, que no Distrito Federal o governo lançou um programa de paz nas escolas. Paz nas escolas não significa ausência de conflito. Os conflitos existem e são necessários, acontecem dentro de casa, nas relações entre marido e mulher, irmãos, pais e filhos, no local de trabalho, para que aprendamos a negociar, abrir mão, abrir espaço para o outro. Na escola também é assim. Mediar os conflitos é importante. É importante que as crianças aprendam a mediar seus próprios conflitos. Agora, a maior dificuldade é na própria relação intra e interpessoal. Porque relacionar consigo mesmo é muito difícil. Já começa com as crianças bem pequenas com a não aceitação e aí que entra a questão do bulliyng. A criança não se aceita e quando tem um colega que fere e pega naquele ponto de não aceitação, isso dói, machuca muito e faz com que a criança sofra. É um sofrimento real, não é imaginário. E esse sofrimento leva a uma série de sintomas psicossomáticos fazendo com que ela não consiga nem mais ir na escola. O bulliyng é a violência que mais cresce neste momento. De 2019 para 2022, só no Estado de São Paulo houve um aumento de 48% dos casos de violência na escola. Em relação ao bulliyng 62%. É muito alto. Quando olhamos pesquisas realizadas, vamos ver que 1 em cada 3 estudantes é vítima de bulliyng. Um em cada 5 é autor. Esses dados se mantêm no mundo todo, mas no Brasil é mais alto. E essas crianças estão dentro das escolas, sendo hostilizadas, perseguidas, ameaçadas, humilhadas em decorrência muitas vezes do seu aspecto físico, que já interfere na auto aceitação. Não é de se estranhar que essa vitima, seja uma criança de 8 e 9 ou um adolescente de 12 a 17 anos, chega ao extremo emocional e extrapola. Aí vemos os casos de automutilação. É uma forma de reduzir a dor emocional. Enquanto estou me machucando eu estou colocando para fora minha dor, porque não tem quem me escuta. Não tenho pais que me escutam, as vezes ouvem, mas não escutam.
"As redes sociais são implacáveis, não tem como se esconder, como apagar tudo isso"
É muito comum ouvir dizer que essa questão do bulliyng é apenas mimimi. É mimimi?
Ouço bastante isso, que não passa de mimimi, que no passado todo mundo passou por bulliyng e não tinha essa frescura. No passado, realmente muitas pessoas passaram pelo bulliyng, sobreviveram, conseguiram a auto superação, mas temos que pensar que muitos adultos ainda são sequelados. Adultos que não conseguem seguir em frente com a vida, são inseguros, tem dificuldades relacionais, dificuldades afetivas, principalmente de estabilidade afetiva, vivem trocando de parceiros porque não confiam, não conseguem ter essa proximidade, não conseguem ter uma relação saudável. Agora, nem todas as pessoas, isso é mito, passaram pelo bulliyng. Eu pelo menos, nunca fui vítima e nunca fui autora, mas na minha época escolar nem tinha esse nome. Os estudos começaram no Brasil no ano de 2000 e fui uma das pioneiras desse tema, com o primeiro livro publicado no Brasil (Fenômeno bulliyng: Como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz – 2005) quando mostro que bulliyng não é mimimi, não é frescura de criança. É algo que traz feridas emocionais. A violência física é fácil constatar. Você vê um arranhão no braço, uma mordida, é fácil dar credibilidade à vítima por que há um ferimento. No caso do bulliyng a maioria dos casos, é uma violência velada, psicológica. Quando as pessoas dizem que é mimimi, não sabem o que realmente é o bulliyng. É preciso identificar alguns critérios desse fenômeno, por exemplo, o bulliyng acontece na gratuidade, ninguém fez nada, é uma violência pela característica da pessoa, ser obesa por exemplo. A persistência das ações, que pode durar todo período de escolaridade, porque a maioria das vítimas se cala. Tenho 22 anos de experiência e o que se vê é a vítima silenciar e a família dizer que é melhor aguentar calado que isso passa. Já escutei até de profissionais da psicologia que ignorar é a melhor saída. Não, é a pior saída. Porque, se você ignora o sofrimento que a pessoa está te causando você vai crescer com a sensação de impunidade e incapacidade, que você não é capaz de lidar com aquilo. Esses sentimentos ficam represados e num dado momento vai escoar, tipo panela de pressão, vai sair a pressão, e isso muitas vezes ocorre por meio da violência ou por meio de problemas de saúde mental. Temos muitas crianças nas escolas vítimas de bulliyng e que tem problemas de saúde mental. Não é de se estranhar que muitas vezes os jovens vão armados às escolas. Não é aceitável. Levam estilete, facas, bombas caseiras ou armas de fogo e acontecem as tragédias como se vê em repetição. Uma das maiores foi de Columbine no dia 20 de abril de 1999 onde dois jovens de 17 e 18 anos mataram professores e alunos e depois se suicidaram dentro da escola. E quando se pensa que isso é só em escolas americanas, no Brasil também temos nossas tragédias. Em 2003, acontece em Taiúva perto de Ribeirão Preto, um jovem, vítima de bullying, concluiu ensino médio volta à escola armado e acaba ferindo colegas, professores e se suicida. Tivemos Realengo (2011) com 12 mortos; Suzano e tantos outros casos.
Com a internet a situação se agravou?
O bullying é escancarado e agora com a internet os jovens são expostos de forma vexatória. As redes sociais são implacáveis, não tem como se esconder, como apagar tudo isso. O cyberbullying é muito mais cruel que o bullying, porque enquanto está acontecendo na escola fica restrito, já o que acontece na internet vira assunto globalizado. É necessária uma força tarefa entre escola, família e instituições governamentais, para traçar planos e escutar os jovens. É preciso dar espaço para que eles falem de suas emoções e sentimentos e aprendam gerenciar tudo isso, porque senão serão adultos sequelados. Temos que pensar no professor, que é um ser humano que também precisa ser escutado, que também tem seus problemas, passou pela pandemia e ficou sobrecarregado de trabalho, teve que se reinventar, gerando ansiedade e problemas emocionais, levando a desenvolver a síndrome de Burnout, do esgotamento.