Há um ano, antes mesmo do vírus chegar em Fernandópolis, o farmacêutico bioquímico, especialista em saúde pública e diretor do Laboratório Paulista, Carlos Lima, alertava sobre o inimigo invisível que já assombrava o mundo. Em entrevista neste espaço, ele afirmava:
“Estamos em guerra contra um inimigo desconhecido e as medidas protetivas que estão sendo anunciadas precisam ser incorporadas no dia a dia pela população”.
Um ano depois, no momento que Fernandópolis e o Brasil enfrentam o pior momento da pandemia, com número descontrolado de novos contaminados, internações e mortes, ele reafirma que “não fizemos a lição de casa” para evitar o caos iminente.
“Ou as pessoas incorporam que estamos numa guerra biológica, contra um inimigo perigoso, invisível, ou vamos viver uma situação dramática”, volta a alertar.
Ele cita que o agravamento da pandemia ocorre em meio ao recrudescimento da dengue, com aumento de casos. Para ele, a politização contribuiu para levar
descrédito à população. Nesta entrevista ao CIDADÃO, Carlos Lima aponta que não tem lockdown que dê jeito sem a vacinação. “Precisamos acelerar a vacinação em massa da população”, aponta. Leia a entrevista:
Um ano de pandemia. Como avalia?
Foi um ano muito difícil e ainda continua sendo difícil. Se há um ano a gente tinha dúvidas inimagináveis, quando o vírus desconhecido batia à nossa porta, um ano depois a ciência se mostrou brilhante resolvendo a questão da vacina, porém, não conseguimos dominar a situação. O mundo inteiro continua em uma situação de risco e o Brasil vive um momento terrível. Parece que a questão de incorporar realmente uma atitude de enfrentar uma guerra ainda não faz parte da cultura dos brasileiros.
Assim como banalizamos a dengue, estamos banalizando a Covid-19?
Acho que isso se deve ao fato que há multiplicidade de informações. Cada um fala uma coisa e as pessoas acabam ficando na dúvida e, da dúvida, passam ao descrédito. Você citou a dengue e nós vivemos uma situação caótica, porque temos a dengue com muitos casos, a Covid com muitos casos, a população desesperada, porém, não se consegue ter um caminho único, porque não há linha de comando, uma linha de informação única para sensibilizar as pessoas que não incorporam atitudes necessárias. Mas, existem pessoas que seguem. Se você for no calçadão da Avenida da Expô vai ver um senhor que caminha com uma sacolinha recolhendo latinhas, copos plásticos. É louvável ver uma atitude dessa. Ele está fazendo a diferença. Então, não é possível que em uma pandemia com tanta recomendação para ficar em casa, as pessoas não possam olhar para seu quintal e ver se tem criadouros do mosquito da dengue. De cada 10 exames que você faz, oito dão positivo para dengue. De cada dez exames, sete são positivos para a Covid. É um absurdo isso.
"Estamos perdendo amigos, pessoas da cidade. O esforço tem que ser coletivo, máscara tem que ser regra"
Há risco de termos uma situação fora de controle?
Apesar de termos a vacina, as pessoas não podem relaxar na sua conduta. Agora estão surgindo as variantes do vírus, que é o fato mais agravante da pandemia. E o grande desafio deste momento, que as pessoas precisam entender é, quanto mais variante tiver, maior o risco e poderemos ter uma situação fora de controle. Os brasileiros estão sendo proibidos de entrarem em outros países, está todo mundo fechando as portas para os brasileiros, por causa da variante de Manaus que é extremamente agressiva. Nós vemos aqui em Fernandópolis, não podemos afirmar ainda, mas há indicativo de que já temos uma variante, porque o número de pessoas infectada é muito grande. A gente faz exame hoje de uma pessoa de uma determinada empresa, amanhã vem mais cinco que também testam positivo. Já têm empresas parando por conta disso. O principal desafio, que é vacinação em massa, nós não vemos. O que vemos é uma briga política, muita conversa. Lockdown sem vacinação em massa não resolve. Ou as pessoas incorporam que estamos numa guerra biológica, contra um inimigo perigoso, invisível, ou vamos viver uma situação dramática. Estamos perdendo amigos, pessoas da cidade. O esforço tem que ser coletivo, máscara tem que ser regra. Os japoneses já nos mostraram isso lá atrás. Um indivíduo com gripe usa máscara para não infectar outras pessoas. Eu já tive o desprazer de fazer o exame de pessoa, confirmado positivo para covid, e depois ver ela no supermercado como se nada tivesse acontecido. Não podemos permitir que se leve a desgraça às famílias. Daqui a alguns anos vamos olhar para trás e ver as sequelas em cada família. Não é simplesmente contrair o vírus. Aqui no laboratório estamos expostos ao risco, felizmente não tivemos ninguém doente, mas você vê o número de pessoas que estão voltando pós-covid com um monte de problemas. É problema cardíaco, problema renal, de coagulação. A Covid está arrebentando com as pessoas. Não dá para passar à margem disso. Tá certo que o ser humano sob pressão tenta marginalizar o problema, mas não podemos baixar a guarda, porque se as variantes do vírus saírem do controle da vacina, aí vamos ter um grande problema.
Como especialista em saúde pública, como avalia o impacto do coronavírus?
Olha, temos algumas linhas de pensamentos. A primeira delas é o aspecto positivo. Nesse um ano nós descobrimos a vacina. Ela não é 100%, mas suficiente para evitar mortes e minimizar os problemas. A ciência atuou com eficiência. Descobriu que algumas medicações realmente não têm efeito, outra que ajuda muito no tratamento. Percebeu-se que o diagnóstico rápido e iniciar o tratamento melhora a chance de evitar que o paciente chegue a ser intubado. Esses são aspectos positivos. Porém, temos aspectos negativos preocupantes, caso das variantes, porque as pessoas negligenciaram no uso da máscara, continuaram se aglomerando em festas clandestinas, ou em reuniões familiares com volume grande de pessoas. Neste caso, percebemos que não evoluímos. Passados 100 anos ainda estamos vivendo crise de dengue. Só vamos mudar e crescer quando incorporarmos atitudes no dia a dia que nos levem a isso. Há 10 anos fizemos um trabalho em parceria com a TV Globo (Amigos da Escola) mostrando que as crianças se contaminavam com verminoses e perdiam rendimento escolar, porque não lavavam as mãos. Neste momento a conduta que se exige é higienizar as mãos, usar álcool em gel e máscara. Evoluímos no aspecto da ciência, do tratamento, mas não evoluímos no aspecto atitudinal, de entender que precisamos adotar medidas para conter o vírus.
"Evoluímos na ciência, mas não evoluímos no aspecto atitudinal, de entender que precisamos adotar medidas para conter o vírus"
O que mostram os números de março, com expansão do contágio e de mortes?
Mostram que as pessoas relaxaram no quesito de proteção e estão à margem do processo e isso não pode acontecer. O esforço não é tão pesado assim para as pessoas não usarem máscara, evitar aglomerações, o momento exige isso. Estamos vendo famílias sendo destruídas. Não tem lockdown que dê jeito, sem a atitude das pessoas em compreenderem a gravidade do problema.
Ainda não fizemos a lição de casa?
Não fizemos e ainda estamos numa letargia da vacinação. Não estamos avançando. O anuncio da vacina fez com as pessoas passassem acreditar que há uma solução. Só que paralelo a isso, elas baixaram a guarda. E tem outro aspecto, o psicológico das pessoas. O que se vê de pessoas surtando, porque é muita pressão e nem todo mundo lida com isso no dia a dia. Outra coisa: até quando os profissionais de saúde vão ficar na linha de frente com toda essa pressão? Chega uma hora, e já estamos vendo isso, não teremos profissionais para atender, tanto que já estão convocando estudantes de medicina, fisioterapia, farmácia.
O temos de perspectiva daqui para a frente?
A perspectiva melhor que nós temos é a vacinação. Temos que torcer e aumentar a pressão para que o maior número de vacinas possível seja disponibilizado no menor tempo para que o esforço seja recompensado. E que cada um tome sua atitude correta, mantenha-se distante, use máscara, lave as mãos o tempo todo. Isso vai ajudar a preservar a saúde e a integridade das famílias até sairmos dessa pandemia fortalecidos e incorporando hábitos e cuidados pessoais para a vida toda e respeitando a saúde coletiva.
"Não tem lockdown que dê jeito, sem as pessoas compreenderem a gravidade do problema"
Muito disso que está ocorrendo seria efeito da politização da pandemia no Brasil?
Sem dúvida, a politização tem sido o maior problema que o país tem enfrentado. Isso tem gerado descrédito, descrença e a falta de atitude das pessoas. Isso tem corroborado para chegarmos ao estágio que estamos, infelizmente. Mais uma vez, a política tem deixado a desejar no quesito de fazer com que o país se mostre robusto, forte.
O que diria às pessoas neste momento caótico?
O momento é de enfrentar uma guerra biológica. Temos que cuidar da gente e de todos que estão à nossa volta. Ficou doente, fique em casa, se isole e procure o tratamento o mais rápido possível, evite a disseminação da doença. Não é porque não estou sentindo absolutamente nada que não estou contaminando. Quem está com vontade de reunir as pessoas para comemorar, evite esse momento. Essa é a forma que podemos fazer para contribuir de maneira significativa para vencer esta guerra. E vamos aumentar a pressão por vacina, esse é o grande desafio para que possamos sair dessa pandemia o mais rápido possível.